Era uma vez Sérgio Leone e Enio Morricone

Por J.L Rocha do Nascimento, em CINEMA

Era uma vez Sérgio Leone e Enio Morricone

08 de Julho de 2020 às 00:22

Não vou mentir. Confesso que primeiro vieram os faroestes simples, aqueles sem música como protagonista e sim como mero coadjuvante, típico do western americano com aquele cenário ao fundo: o grand-canyon emoldurando a paisagem deserta, um lugar quase sempre comum. Cavalarias do exército americano, quando não massacravam, empurravam os índios para fora de suas terras. Longas colunas de comboios rumando em direção do oeste selvagem, o novo eldorado, em busca de ouro, fortuna, pasto para o gado, uísque e diversão.

Normalmente, os mocinhos cavalgavam sozinhos ou em duplas, nunca se faziam acompanhar de uma mulher, curioso isso. O primeiro filme que vi foi um desses. Havia uma cena de uma diligência caindo direto em um precipício. A cena me pareceu tão real, que me abaixei tentando me esconder embaixo da poltrona da frente, para me proteger. Os filmes de cowboy americano eram bem assépticos, do tipo terno e gravata, com personagens bem definidas: de um lado o bom, o mocinho, o herói; do outro, o bandido, o facínora, aquele que sempre levava a pior, porque o crime não compensava. Bem por isso havia uma lei entre os meninos do meu tempo, deslumbrados que éramos com os filmes de faroeste: o mocinho não podia morrer. Filme em que o artista morria no final não prestava.

O tempo passou, a fórmula se esgotou e os cowboys americanos foram tirados de cartaz. No lugar deles surgiu um subgênero que, embora visto com certo esgar, ironicamente, foi o responsável pela sobrevida do próprio gênero na América.

Sim, refiro-me aos westerns spaghetti filmados na Europa. Os protagonistas eram invariavelmente sujos e moralmente questionáveis. Vestiam grandes jaquetas, a barba estava sempre por fazer, não tinham um propósito definido, não se sabia exatamente quem era bom ou mau, mocinho ou bandido. Havia uma ambiguidade no ar, no andar e no olhar de cada personagem, todos eram um pouco de cada coisa. A dúvida fazia parte do plano.

No começo, houve um acanhamento. Atores que mais tarde se consagraram com o nome na língua de origem, no começo usavam um nome bem hollywoodiano. Foi o caso de Giuliano Gemma, cujo nome artístico inicialmente foi Montgomery Wood.

O subgênero se tornou uma febre e tantos foram produzidos que surgiu o próprio lado b dos faroestes italianos, filmes rodados com um custo tão baixo que o resultado não poderia ser outro senão a baixa qualidade técnica. A grande maioria foi inspirada no cineasta que ficou consagrado como o responsável pela revolução no gênero: Sérgio Leone, a quem se deve também atribuir o estrelato de um ator até então desconhecido (Clint Eastwood). Verdadeiro autor de um cinema sofisticado, bem elaborado, algo inédito no gênero faroeste, os filmes de Leone são verdadeiras óperas. Foram tão bem realizados que o sucesso obrigou o próprio western americano a se reinventar, a se ressignificar.

Mas nada seria igual sem a grandiosa música de Ennio Morricone. Foi com “Cinema Paradiso” que ele ganhou o Oscar de melhor trilha sonora, mas, para mim, as trilhas mais arrebatadoras são aquelas da trilogia dos dólares (“Por um punhado de dólares”, “Por uns dólares a mais” e “The good, the bad, the ugly”, título em inglês, e que mais se aproxima do original em italiano [II brutto, II brutto,  II cattivo], algo que, numa tradução literal para português, resultaria em “O bom, o mau e o feio”, no que seria um título bem mais significativo do que “Três homens em conflito”, adotado no Brasil)  e do épico dos épicos “Era uma vez no oeste”.

Arrisco a dizer que não haveria um Sergio Leone sem um Ennio Morricone e nem Morricone sem Leone, algo parecido como a relação entre o ser e o ente. Todo ser é ser de um ente, que só existe no seu ser.

Tudo isso porque a música para Leone era mais um elemento do roteiro do filme. Conta-se que ele, diferente dos outros cineastas, só rodava quando tinha pronta a música para a cena a ser filmada. A câmera em movimento tinha a trilha sonora na retaguarda, daí se dizer que a música, nos seus filmes, era também uma personagem.  Grosso modo, e mal comparando, é como se a música fosse para o cinema de Leone o mesmo que determinada torcida, que veste a décima segunda camisa, representa para o seu time de futebol. Essa sintonia atingiu o seu ponto de estofo com a música de Morricone.

Exemplo típico é a cena final do duelo, na verdade um trielo, entre o loirinho (Clint Eastwood, no papel do bom), os olhos de anjo (Lee Van Cleef, encarnando o mau) e o Tuco (o impagável Eli Wallach, figurando o feio), de “Três homens em conflito”. Trata-se do ponto alto do filme e não é por acaso que o título da música da cena final se chama “The ectasy of Gold” (a êxtase do ouro). Ela é simplesmente mágica, apoteótica, intensa, tal como o desfecho da película que anuncia.

Primeiro, num crescendo, a música acompanha a cena que antecede o duelo: a busca desenfreada de Tuco, que, em êxtase, corre de um lado para o outro do cemitério na tentativa de localizar, antes de seus oponentes, a cova em que estavam enterrados os duzentos mil dólares, alvo de disputa entre os três.

Em conto publicado no blog Confraria Tarântula (http://confrariatarantula.blogspot.com/) intitulado “O trielo” eu descrevo o perfil dos três protagonistas, realçando a característica de cada um. É um conto que deve ser lido ao som da trilha sonora original do filme.

Veja o filme. Leia o conto. Ouça a música. É puro êxtase.

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