A Caça (Dinamarca, 2013)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

A Caça (Dinamarca, 2013)

21 de Maio de 2014 às 22:46

“O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.”

Guimarães Rosa

A sensação de injustiça é talvez um dos piores sentimentos que o ser humano possa experimentar. Isso porque a injustiça gera dúvida e insegurança. E qual pior sentimento do que o equívoco sobre o próprio caráter? Seja para aquilo que se propôs, ou quando as circunstâncias se postam mais forte que a escolha do ser, o homem sempre está em busca incessante por integridade, à procura da plenitude da existência.

Sobre esta temática versa o filme “A Caça”. Thomas Vinterberg, em seu melhor longa-metragem desde Festa de Familia (1998), aborda como poucos o olhar do injustiçado. A análise da complexidade que envolve uma situação arbitrária é enriquecida quando o suspeito luta contra a unanimidade, pois a pedofilia é um tema que carrega em si uma natureza indiscutível de culpa ao indivíduo que a pratica. O diretor não economiza na sinceridade ao abordar um assunto tão delicado. Existe uma máxima que diz: Se não falamos sobre tal assunto, é para que ele não exista. Em “A Caça” não cabe tal consideração. A pedofilia é debatida exaustivamente, nem tanto sobre o ato em si, porém mais sobre os males que a resignação em discuti-lo possa ocasionar.

Que me perdoem os politicamente corretos, mas Thomas Vinterberg não dá a mínima para a hipocrisia. Por essas bandas de cá, não é de se estranhar o mal-estar que o filme tem causado. A naturalidade com a qual o cinema escandinavo aborda temas delicados sempre foi característica em não deixar se submeter a padrões pré-definidos. A Dinamarca integra os países nórdicos. Nesta região se encontram os países com maiores índices de desenvolvimento humano. A Dinamarca é conhecida por ser o país menos desigual do mundo: quase todos têm empregos bem remunerados e acesso à saúde, além de viverem em uma sociedade onde a violência urbana nunca existira. A maioria da população não possui carro próprio, pois o governo mantém eficaz política de mobilidade urbana. Embora não sejam países com uma orientação liberal, os assuntos que por aqui angustiam a sociedade, por lá são debatidos de forma clara e objetiva, doa a quem doer.

Voltando ao enredo, em certo ponto Theo (Thomas Bo Larsen) se dirige a sua filha Klara (Annika Wedderkopp): “A maldade está em todo lugar, mas se nos ajudarmos mutuamente ela desaparecerá”.  Esta frase talvez seja a mais representativa de “A Caça”. Não se trata de fagulha de esperança, é uma “nobre” atitude que nasce mais do desespero do que grandeza de caráter. No olhar de Thomas Vinterberg, o senso de realismo sobre as dificuldades das relações humanas prevalece: o homem vislumbra um meio de aliviar seu sofrimento, mesmo que isto envolva barganha por uma desgraça menor.

O clima de terror que impera no longa-metragem se deve bastante ao comportamento das pessoas do círculo social em que Lucas (Mads Mikkelsen) está inserido. As atitudes inconseqüentes de todos que o rodeiam engolem o protagonista que, aniquilado, não lhe resta sequer chance de argumentar. Thomas Vinterberg falha quando flerta com o sensacionalismo ao tentar enojar o personagem principal. Carece um pouco de sobriedade na construção desta percepção. Mas se a trama perde em realismo, ganha pontos quando o assunto é aliciar o espectador.

A câmera na mão, resquício do movimento Dogma 95, criado por Vinterberg e Von Trier, embora usada com menos ênfase, ainda se faz presente. Este artifício associado a enquadramentos sufocantes traduzem a sensação de claustrofobia que Lucas está vivendo. Esta Via Crucis por qual passa o protagonista lembra o sofrimento de Nicole Kiedman em Dogville (2003), do também dinamarquês Lars Von Trier. A semelhança dos enredos se fortalece no desenrolar da história quando, no assustador plano final, uma visão singular prevalece sobre todas as coisas.

A sensação de incomunicabilidade entre os seres humanos, mesmo numa das sociedades mais justas do planeta, é representativa do quanto nossa civilização ainda se encontra distante da harmonia.  O instinto destrutivo impera e devora a lucidez. O sensato faz morada na angústia. O horror se sobrepõe a esperança. E para os que ainda consigam manter certo otimismo, não é por demais alertá-los que a história da raça humana sempre foi e será maravilhosamente errática

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