A coragem escondida na pele

Por Mine Castro, em POESIA

A coragem escondida na pele

29 de Junho de 2022 às 14:58

A coragem aparece como vulto e me assombra. Desejei descrevê-la, dizer como a vejo e de onde suponho que ela vem, mas eu não sei nada sobre coragem, como não sei nada do amor, como não sei de tudo que arrebata e irrompe sem pedir licença; eu não sei do que me arrasta, tampouco do que tempera e prolonga a sobrevida dessa carne insossa.

 

Tantos me chamam de corajosa… Logo eu, que observo os compassos, abrigo silêncios,

penso e repenso, meço os estragos, escolho as palavras e, com os olhos atentos, calculo a força da onda que pode me derrubar. 

 

A coragem não está no atrevimento, nem mesmo na loucura. Coragem não é abrir os braços e saltar de um avião a dez mil pés e cair a trezentos por hora, com a confiança no paraquedas. Coragem não é chegar perto do abismo e olhar para baixo. Coragem não é a bravura de andar sozinho pela noite, resoluto, a fazer careta para o perigo. Coragem não é o brio de enfrentar os corruptos e injustos que cerceiam nossos galhos a florescer, nem mesmo o grito aos que ameaçam calar nossas vozes. Coragem não é dizer não quando se quer dizer sim, nem mesmo dizer não quando se pretende o não. Coragem não existe senão como o verbo que dá sentido à vida. Coragem é palavra que não cabe fora do desejo. 

 

Uma criança pequena e uma surfista enfrentam o mar que me assusta. Duas mulheres — a menina e a surfista experiente — adentram o mar revolto na tarde nublada. Mergulham e tiram dos olhos os cabelos que a água desorganizou; riem e parecem satisfazer alguma fome. De longe, vejo o quanto estão felizes; se mora medo ali, não o vejo, sequer sinto o cheiro. Ou melhor, o mau cheiro, porque o medo fede. Nessas horas, o mar não está amigo, suas cores e seus movimentos sugerem mais morte do que vida e lá estão elas, sozinhas e intrépidas, em contato íntimo com o imenso. Em quem elas confiam? É visível que o mar está para a morte e, ao chegar à praia, a surfista ainda confessa: “está tão bom, que não quero sair!”

Como isto é possível? 

 

Molho os pés e sinto medo. O mar avança e alcança meus joelhos. Não posso mergulhar agora. Meus joelhos… A água embebe a carne onde a cicatriz rompeu, pela queda que, ainda ontem, o mar me ofertou. O sal faz arder a carne machucada; a epiderme no estrato granuloso a ruir. Eu já não sei se tive coragem de mergulhar naquele mar revolto de ontem ou se coragem é temperar a ferida de hoje. A coragem também tem camadas, como a minha pele que se regenera. Os ventos migram, o mar muda de humor e a coragem pode ser testada outra vez. Onde mora a coragem corre o sangue. 

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