A Estética na obra Morangos Silvestres e outros contos eróticos

Por Carlos Evandro M. Eulálio, em ENSAIO

A Estética na obra Morangos Silvestres e outros contos eróticos

17 de Fevereiro de 2023 às 15:58

Alguns teóricos consideram o erotismo o tema mais antigo da literatura.  Na antiguidade o vemos desde os Cânticos dos Cânticos da Bíblia, perpassando pelo Satíricon, texto de Petrônio escrito no século I, aos escritos do francês Marquês de Sade (1714-1814). No Brasil, o erotismo como arte literária surge inicialmente com Gregório de Matos Guerra (1636 – 1696) e comparece nos textos de alguns autores das nossas escolas literárias do século XIX aos dias atuais. Obras que há algum tempo eram restritas, por vezes até de circulação clandestina, são agora acolhidas por um público bem maior em relação àquele de décadas passadas. Mesmo diante de um número razoável de publicações de obras que abordam a sexualidade, observa-se, no entanto, que alguns leitores alimentam tabus em relação a essa linha de produção, vista ainda como gênero de texto de qualidade inferior ao cânone literário, talvez pela dificuldade que têm em distinguir o pornográfico do erótico. Para definir esses termos com mais precisão, alguns autores partem de conceitos dicotômicos, quando consideram o erotismo uma arte elevada, produzida para estimular o intelecto, enquanto o pornográfico uma arte rebaixada, para estimular o corpo, portanto, desprovida de qualquer função estética, servindo apenas ao estímulo sexual. (GUIDOTTI, 2019, p.29).

Com base nos conceitos de Maingueneau, para quem o texto erótico é sempre tomado pela tentação do esteticismo, tentado a transformar a sugestão sexual em contemplação das formas puras, a professora Clarissa Garcia Guidotti esclarece: [...] enquanto o texto pornográfico será explícito e direto, com o uso de uma linguagem muito mais denotativa, o erotismo se valerá das ambiguidades, metáforas, metonímias e outras figuras de linguagem. A diferenciação básica que Maingueneau estabelece entre os dois gêneros, tem a ver com o uso da função poética, que será amplamente solicitada pelo autor do texto erótico. (GUIDOTTI, 2019, p.30).

Fundamentada na etimologia desses termos, a psicóloga Audrey Vanessa Barbosa Leme declara: [...] a palavra pornografia do grego pornographos remete a hábitos e costumes relacionados à devassidão sexual, ao que é considerado obsceno, indecente, sendo veiculada por meio de imagens, publicações, linguagens, gestos etc. Também do grego, a palavra erotismo, de Eros, Deus do amor e da Paixão, relaciona-se à sensualidade e ao amor; é a poesia do sexo. O erotismo insinua, deixando espaço para a imaginação, enquanto a pornografia é explícita (LEME, 2015). 

Nessa linha de raciocínio, eis a seguir algumas opiniões de escritores especialistas no assunto, coligidas por Omar Godoy, em seu texto A lei do Desejo:

-  Eliane Robert Moraes, crítica literária, organizadora da Antologia da poesia erótica brasileira afirma que a separação entre erotismo e pornografia parece ser mesmo um entrave na compreensão da sexualidade na arte.

- Márcia Denser, autora de O animal dos Motéis (1981), rejeita o rótulo de literatura erótica. Ela se queixa de ter recebido o carimbo de escritora erótica por questões comerciais: Não sou escritora erótica, nem faço literatura erótica. Faço literatura, ponto. 

- Antonio Carlos Viana, escritor sergipano e teórico da literatura, ensina que um dos cuidados a serem tomados pelo escritor é esquecer o perfil de quem vai ler a obra. [...]. O que importa é que a linguagem seja aliciadora, que o cative a cada palavra colocada, transportando para algo que ele conhece, mas nunca viu escrito daquele jeito. Ele acredita ainda no poder da sugestão, afirma que, muitas vezes, você pode fazer simplesmente uma alusão à cena e nada mais. Existe conto mais erótico do que “Missa do Galo”, de Machado de Assis? Tudo ali é apenas sugestão, mas o clima erótico envolve as duas personagens de tal forma que até parece sonho, conclui Viana.

Na entrevista a Wellington Soares, respondendo acerca de sua faceta erótica em Fesceninos (sic), conto que abre o livro Dei pra mal dizer, escrito em parceria com Airton Sampaio e M. de Moura Filho, J. L. Rocha do Nascimento afirma: Embora recorrente, o erotismo ainda é um termo interditado, quase sempre visto com alguma reserva, sobretudo por quem não sabe fazer distinção entre erotismo e pornografia. Parafraseando o filósofo alemão Hans-Georg Gádamer, se o leitor quer compreender um texto, tem que deixar que ele diga algo, numa palavra: tem que dar uma chance ao texto. Foi isso que aconteceu. Quem suspendeu os seus pré-juízos, e leu o livro, percebeu que o tratamento dado ao tema foi sério, há neles uma preocupação estética. Infelizmente, alguns leitores fizeram apenas juízos morais e não estéticos (ROCHA DO NASCIMENTO, J. L. 2021, p. 58).

São pertinentes as palavras do autor, quando lemos a sua mais recente obra literária Morangos Silvestres e outros contos eróticos. O estético em suas páginas é um dos principais ingredientes que concorrem para a construção da tessitura textual do livro. O trabalho artístico do autor deriva dos inúmeros recursos estilísticos que utiliza nos contos, decorrentes do uso da função poética, através de imagens sinestésicas e sugestivas, metáforas, alusões e associações que presentificam nos textos elementos semânticos e/ou formais inerentes aos gêneros de textos, teatral, musical e cinematográfico.

O livro é composto de 21 contos, repletos de referências intertextuais, a maioria narrados em primeira pessoa (exceto os contos Butim, Conjunção de Sabores e Óleo de Ameixa), todos com personagens inominadas. São protagonistas dos relatos personagens tanto masculinas quanto femininas. Geralmente o final de um conto abre o início do seguinte. Essa técnica nos intui afirmar que os contos da obra, embora autônomos entre si, unificam-se na totalidade da narrativa. Com isso, o autor consegue vencer um dos maiores desafios dos escritores da atualidade, qual seja o de manter o leitor interessado do início ao final dos textos que se cruzam e se completam na narrativa seguinte, caracterizando um formato de livro que transcende limites da prosa tradicional. A retomada da história de um conto por outro, em geral acontece com mudança do foco narrativo, embora os textos mantenham a sequência da mesma história, como nos contos Anjo Sado e Gran Finale, por exemplo. Em Anjo Sado, o foco narrativo é da perspectiva do primeiro narrador-protagonista:

Adoro quando você me amarra os pés e prende minhas mãos, ela disse, enquanto eu me preparava para o ritual, que dei início logo após saírem de sua boca as palavras mágicas: vai, me bate! Bate forte, daquele jeito. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p. 65).

Já no conto seguinte, Gran Finale, o ponto de vista se transfere para o segundo protagonista:

Minhas carnes tremiam quando perguntava se eu queria apanhar, de mentirinha, claro, mesmo batendo forte. Eu, é claro, dizia quero, bate! E, naquele dia. Eu queria mais que nunca. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p. 67).

O conto de abertura, Morangos Silvestres, título inspirado no filme do mesmo nome, do sueco Igmar Bergman, evoca cenas associadas implicitamente ao protagonista dessa grandiosa obra cinematográfica Isak Borg:

[...] Instantes depois, nossas roupas misturadas pelo chão, nossos corpos nus perseguiam um ao outro e nossas carnes, trêmulas, ardiam em brasa. Em Bergman, será que eles são apenas uma referência? Perguntou, enquanto tocava com a ponta da língua e superfície texturizada. Em suas lembranças, o protagonista volta à cena em que sua paixão de adolescência se dirige ao pomar. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.11).

Na sequência, não numa sucessão linear de eventos, mas numa conexão de cenas em cadeia discursiva, como nas montagens de Bergman, a personagem dialoga com Sérgio Leone, cineasta italiano, mestre no manejo do close-up:

[...] Insisti nos movimentos circulares, já bem na antecâmara. Seus olhos pareciam desmaiar o corpo. Pensei numa tomada com a câmera avançando rápido à maneira de Sérgio Leone. Afaste uma da outra, deixe-a abertas, o máximo possível, escancaradas, para que ela cresça diante dos meus olhos, quero ver tudo, eu como com os olhos, você sabe. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.12)

Outras alusões e associações que estabelecem relações com o cinema e com a literatura, merecem destaque no mesmo conto, nas seguintes passagens das páginas 12 e 13:

- [...] Veio-me então outra ideia, Brando é que estava certo, nada de seguir roteiros preconcebidos. (Sabe-se que o ator Marlon Brando – 1924/2004 - improvisava parte de suas falas nas cenas que representava no cinema). 

-  [...] Transformei-me num cão farejador, dei de salivar. Os que bebem como os cães, lembrei-me não sei bem por quê, do episódio bíblico, ou teria sido do romance? Ainda à maneira canina, comecei a lamber aquela pele azeitada com óleo de ameixa. Matei minha sede. (Referências ao romance de Assis Brasil, Os que Bebem como os Cães, e aos que bebem como os cães da passagem bíblica do Livro dos Juízes, capítulo 7, em alusão ao exército de Gideão).  

- [...] Passado algum tempo, ela e suas carnes, subjugadas, vieram ao chão, como as muralhas de Jericó. Eu um Josué recompensado, depois de sitiar, invadir e conquistar a cidadela. (Alusão à queda das muralhas de Jericó, relatada no velho testamento).

- [...] E antes que os galos da madrugada tecessem a manhã, o aço de minha espada, por seguidas vezes, foi chamado ao campo de batalha e não se curvou. (Referência ao poema “Tecendo a Manhã” de João Cabral de Melo Neto).

Em diálogo, o protagonista retoma Bergman ao mencionar o filme O Sétimo Selo, adaptação de uma peça de teatro do mesmo diretor, e a Quentin Tarantino, diretor e crítico de cinema americano. O Sétimo Selo refere-se a uma passagem do Apocalipse, em que Deus tem sete selos nas mãos. A abertura de cada um representa um desastre para a humanidade, sendo o último deles o fim dos tempos de forma irreversível:  

[...] – Tarantino, à sua maneira, muda a história ao evitar a abertura do sétimo selo. - E daí qual a relação com Bergman? – Não percebe? – Não. – Que tal vermos agora o nobre cavaleiro irlandês naquele jogo de xadrez com a morte? Você encontrará a resposta. Ela, sem tirar os olhos do cão andaluz, já meio adormecido, respondeu: - Com uma condição. – Qual? – Depois que se abrir o sétimo selo, vamos brincar de cabra-cega (ROCHA NASCIMENTO, J.L. 2022, p.14).

Na sequência, o conto Cabra-Cega.

A relação entre os contos da obra Morangos Silvestres e outros contos eróticos e o cinema acontece não apenas em função da referência a cenas de filmes, mas à sintaxe cinematográfica da narrativa que descreve os movimentos das personagens e os objetos em cena. O mesmo ocorre em relação ao teatro e à música. No conto Cabra-Cega, o segundo do livro, a música constitui o principal recurso para a construção desta cena:

[...] Pra completar meu domínio cego, digo que quero ouvir Wagner. Apocalypse Now! Impossível esquecer a cena. Sou eu quem está surfando. Ele é meu pedaço de praia, o meu cavalo de aço, o meu cuspidor de fogo. Anda, quero ser abatida enquanto cavalgo. Quero ouvir o matraquear dessa metralhadora. Quero morrer sob fogo de artilharia. E morro. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.18)

 

Em Apocalypse Now, filme épico de guerra norte-americano de 1979, do diretor Francis Ford Coppola, o ataque de helicópteros americanos a uma aldeia vietnamita, ao som da Cavalgada das Valquírias, prelúdio do terceiro ato da ópera A Valquíria, de Richard Wagner, serve como música de fundo de uma das mais famosas e inesquecíveis cenas de combate já levadas às telas dos cinemas.

 

O conto Prelúdio, em virtude de sua estrutura dramática, pródigo em recursos poéticos (metáforas e sinestesias), visuais e cênicos, demanda um espaço como o palco, a fim de ser representado e não narrado. Isso porque o conto é construído por meio do diálogo que faz a história acontecer, sendo viável adaptar-se ao teatro e ao cinema.

Para Bataille, o erotismo consiste numa experiência ligada à experiência da vida, não como objetivo de uma ciência, mas da paixão mais profundamente, de uma contemplação poética. (BATAILLE, 1987, p.14). O elo entre o erotismo e a poesia está presente no conto Expresso da Meia Noite, através de uma linguagem metafórica do início ao final do texto:

 

“Teu corpo nu, frente ao espelho, translúcido como a pele de um ovo, eu o tenho sempre nos meus braços, quando você se azeita”. Lembra? [...] - “Tua cabeça levemente soerguida para um dos lados. Os olhos fechados seguem, caminham em busca do primeiro vagão do trem, que vem que vem e segue direto para as estrelas”. [...] - “Teu monte de Vênus negro contrasta com a brancura da pele branca. Parece uma ilha, um oásis redentor. Me curvo tal qual um sacerdote e me coloco na frente de tua morada”. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.63-64).

No conto E se eu escrevesse como o Rubem Fonseca? a ligação entre literatura e erotismo persiste implicitamente, quando no diálogo das personagens é feita uma alusão a duas obras de Rubem Fonseca, O Caso Morel (primeiro romance do autor) e o conto Lúcia McCartney:  

Na madrugada o telefone toca.

– Liga pra mim, amanhã cedo.

- De novo? Estamos ao telefone e já passa da meia-noite.

- Antes de tomar o café da manhã, quando eu sair do banho, na hora em que eu estiver me lambuzando com óleo. Só pra me chamar de putinha.

- Tá.

No dia seguinte é a primeira coisa que eu faço.

– Sua puta! Cadela, vadia!

- Assim, não! Quem chama assim é o Paulo Morel, um personagem de Rubem Fonseca. Se pelo menos fosse igual ao José Roberto. Quero daquele jeito, do jeito que eu gosto. Você sabe. (ROCHA NASCIMENTO, J. L. 2022, p.69).

No diálogo, com a tomada de consciência crítica, a partir da alusão aos perfis das personagens José Roberto e Paul Morel, instaura-se no conto o tom parodístico da narrativa. Com uma dose de humor e ironia, o narrador reflete na obra o estilo “direto e brutal” de Rubem Fonseca.  

Eis, portanto, em linhas gerais, um breve comentário de alguns contos da obra Morangos silvestres e outros contos eróticos, de autoria do já consagrado contista piauiense J. L. Rocha do Nascimento. É uma obra que explora a interface da literatura relacionada a outras manifestações artísticas, como o teatro, a música e o cinema. Além dessas relações intersemióticas, o autor desenvolve na obra possibilidades estéticas que tornam as construções sintáticas dos textos menos discursivas e mais poéticas, através de uma linguagem visual, sugestiva, metafórica e sinestésica.          

 

* Carlos Evandro M. Eulálio é professor de Literatura e membro da Academia Piauiense de Letras.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Editora ARX, 1987, citado por NOVAES, Nayara M.S. In dissertação de mestrado 

Uberlândia: UFU, 2017, p.13.

GUIDOTTI, Clarissa Garcia. O coração que pulsa entre as pernas: uma história da expressão do desejo, a partir da antologia erótica brasileira. Rio Grande - RS Universidade Federal do Rio Grande -  https://ppgletras.furg.br/dissertacoes-e-teses/publicacoes-de-2019.

GODOY, Omar. A lei do desejo. www.bpp.pr.gov.br/Candido/Página Especial-Literatura, acessado em 2/1/2023.  

LEME, Audrey. Erotismo x Pornografia. https://www.psicologiasdobrasil.com.br., acessado em 4/1/2023

 ROCHA DO NASCIMENTO, J.L. In SOARES, Wellington (org.). Entrevistas com autores piauienses e um bróder. Teresina: Quimera Editora, 2921.

SOARES, Wellington (org.). Entrevistas com autores piauienses e um bróder. Teresina: Quimera Editora, 2921.

https://classicosdosclassicos.mus.br/apocalypse-now-coppola-wagner-cavalgada-das-valquirias, acessado em 4/1/2023.

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