A garota sardenta

Por Márcio Barros, em CONTOS

A garota sardenta

30 de Maio de 2018 às 16:45

 

Ela chegou sozinha. Sentou junto a uma mesa no fundo do bar. Pediu um chope ao garçom amarelo que passava. Enquanto esperava o pedido, mexia o cabelo, distraída, mirando o vidro espelhado da janela. Abriu a bolsa, tirou uma carteira de cigarros e uma caixa de fósforos. Já ia acendendo um, quando o garçom, chegando com o chope, advertiu-a de que não podia fumar. Consentiu com a cabeça, sorrindo e devolvendo o cigarro à carteira.

Era uma mulher de uns trinta anos, excessivamente branca, o rosto salpicado de sardas. Tinha uma beleza tímida, tão discreta que os colegas de mesa mal a perceberam. Provavelmente nunca havia aparecido por ali, antes. Não me lembro. Comecei a admirá-la, enquanto bicava a cerveja e ouvia a conversa dos companheiros.

Sempre nos reuníamos no mesmo bar, às quintas feiras, à tardinha. Éramos amigos de longas datas. Naquele dia, o papo fluía leve e frouxo, como sempre, mas eu andava distante. Ultimamente, era-me difícil prender a atenção por mais de cinco minutos no que quer que fosse, logo, pensamentos aleatórios me assaltavam a mente, tortuosos e agitados.

Mas a moça sardenta conseguiu me puxar para a realidade. Portava um vestido azul discreto e óculos de armação grossa. Tinha um rosto afilado, enfadonhamente comum, não fossem as sardas marrons. Exibia uma serenidade acintosa, sentada de pernas cruzadas, recostada, burilando a caixa de fósforos sobre a mesa. As pessoas e o ruído do bar eram-lhe indiferentes. Olhava fixamente em direção à rua, como se contemplasse uma paisagem ou pintura secreta.

Na minha mesa, a conversa seguia seu fluxo normal. Ria-se, Falava-se alto, e sobre os mais variados assuntos, sem se demorar em nenhum deles. Era bom estar ali, embora eu tivesse a impressão de que andávamos em círculos, falando sempre sobre as mesmas coisas. Acredito que fosse o poder do hábito que me trouxesse para lá às quintas feiras, impreterivelmente, ou simplesmente uma necessidade premente de estar acompanhado.

Talvez por isso a garota me chamasse a atenção. Era como se zombasse de mim, inconscientemente, com sua impassibilidade. Não conseguia entender como alguém podia entreter-se consigo mesmo, por tanto tempo. E ela continuava sua liturgia mesquinha: Vez ou outra bebericava o chope e mirava-se no espelho, sempre tamborilando a caixa de fósforos. Nunca olhava o celular ou o relógio. E eu, que mal suportava as horas insones da madrugada em que era obrigado a ouvir a arenga de meus demônios interiores, sentia-me humilhado e quase ofendido com toda aquela autocomplacência.

À medida que a noite avançava, a penumbra cobria o salão e parecia harmonizar seus traços. As sardas suavizaram-se e a pele ganhava um tom levemente mais escuro. A garota sardenta embelezava-se e sua placidez aumentava ainda mais. Como os companheiros da mesa não a percebiam? Não conseguia entender. Quis me sentar junto a ela. Perguntar-lhe o que fazia,  conversar amenidades, rir, arrancar algumas migalhas da sua intimidade ou, simplesmente ficar em silêncio diante de si, contemplando o caos da vida mesquinha que passava pela rua.

Mas, de repente, um amigo do lado me mostrou um vídeo de um assassinato que ocorrera minutos antes nas proximidades do bairro: Bandidos fulminando o proprietário de uma mercearia, à queima roupa. Tive a sensação de que já o havia assistido, mas ele me garantiu que era Impressão minha: “acabara de acontecer”. Não sei quanto tempo me distraí com tudo aquilo, e quando dei por mim, ela já havia pagado a conta e se dirigia à rua.

Tencionei segui-la, mas começaram a discutir sobre a próxima eleição presidencial e a crise econômica que se aproximava. Perdi-me entre as argumentações requentadas dos companheiros e quando notei, a garota sardenta era apenas mais um dos inúmeros pensamentos que se embaralhavam na minha cabeça distante. Mais tarde, quando fosse me preparar para dormir, provavelmente já estaria substituída por muitos outros que apareceriam depois e que me deixariam insone. Na quinta seguinte, certamente, já nem me lembraria mais dela. Mas naquele dia, sem que percebesse, flertava demoradamente com o presente. Uma garota sardenta.

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