Amores Brutos, Cidade do México, 2000

Por Leonel Veloso, em CINEMA

Amores Brutos, Cidade do México, 2000

31 de Março de 2016 às 04:12

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Ao me defrontar com as últimas obras de Alejandro González Iñárritu, recordei-me das primeiras. Por tal razão, desejei lembrar de uma em especial, sem reassistí-la, apenas contando com as recordações que ainda fazem parte da minha memória até o momento em que aqui escrevo. Em Amores Brutos dedicar-me-ei, assim, aos seus verdadeiros protagonistas: os cães. Em especial, Cofi que, mais tarde, tornar-se-á Negro
)
Cofi é um cão bonito, feroz, robusto. Em seu sangue, caminha uma alma nervosa da raça Rottweiler. É, igualmente, fiel ao seu dono, deixando que este o trate como companheiro ou simples moeda de troca. Isso porque Cofi acostumou-se em participar de sangrentas e inescrupulosas ‘rinhas’ promovidas por este mesmo homem, em consonância com sua (pseudo)inteligência. Infelizmente, é assim que ele cresce e hipertrofia seus músculos: aos gritos viris de humanos alucinados circundando o seu cristalino. E a cada voz vista, torna-se mais hostil, sem se dar conta da razão de fazer parte de tal conluio. Ao final das sofríveis sessões em que é submetido, ele parece cansado e ofegante, sangrando e crucificado, enquanto os donos sorriem de felicidade, sem se darem conta de que, ali, projeta-se o ódio e o rancor dos próprios. É necessário, por assim dizer, que um projétil de arma de fogo o atinja para que seja refletida a sua própria redenção.
Mas antes que esta sangrenta bala tome conta de seu semblante, é preciso mencionar a poodle Richie, uma cadela muito bem cuidada e afável, criada em apartamentos de luxo, compartilhada pelos melhores prazeres mundanos. Ela passa horas no cabelereiro, cuida das unhas, alimenta-se das mais importantes rações. Como se pode perceber, parece estar em um mundo muito distante do de Cofi, sem violência, estupor ou desespero. Mas como estes dois seres, aparentemente tão distintos, poderiam se enlutar? A resposta talvez venha do mesmo ódio mencionado anteriormente e que é gerado a partir dos rancores vividos pelos próprios donos. Richie, assim, não precisa das rinhas sangrentas para entoar seus agudos latidos e atiçar os mais profundos sofrimentos da sua bela criadora. Ela, ao contrário, só precisa estar trancada, sem poder aproveitar de seus antigos prazeres materiais, sem se entreter com aquilo que, de fato, não é necessário. E dar-se conta disso é se angustiar.
Cofi e Richie jamais se conheceram. O encontro, na realidade, deu-se por uma acidental e sangrenta participação de seus inapreciáveis donos, gerando escoriações resistentes de cicatrização. É, assim, mais uma, dentre tantas outras consequências, a que uma violenta batida entre carros pode gerar.
E aqui surgem outros cães andarilhos e sem nome, acompanhados de seu dono, El Chivo, nome este que tem cabrón como principal sinônimo e que talvez guarde a pior das mágoas. É esse grupo que conhece Cofi, que cuida de suas feridas, trata-as com afeto e cuidado, fazendo-o sentir-se único e acolhido novamente. Aqui, suas escoriações e seus traumas não foram por completo sanados, mas, paulatinamente, parecem ter sido diluídos, diminuindo o ardor e inapetência que produziam outrora. Por assim dizer, tal fato refletiu-se em seu novo dono e nos caminhos que decidiu retomar a partir de então. Talvez por isso, Cofi, passou a ter nova identidade, sendo agora chamado simplesmente de Negro.
E, “aqui começa, porém, uma segunda história, a da lenta renovação de um homem, da sua regeneração progressiva, da sua passagem gradual de um mundo para o outro”, como a que Raskólnikov sofreu há séculos atrás. “Podia ser a matéria de uma nova narração. A que se quis oferecer ao leitor, acabou aqui”.
(“Quando os resíduos arderam em chamas, os milharais ficaram verdes de novo”)
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