Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (EUA - 2014)

Por Raul Lopes, em CINEMA

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (EUA - 2014)

25 de Fevereiro de 2015 às 14:37

Grande ponto para o Oscar deste ano a premiação de Birdman. Apesar de indubitável, a premiação deste longa faz perceber que ainda existe espaço para bom senso, ainda que parcialmente digerido, visto outros vencedores.

Birdman ganha porque não foi feito pra ganhar, não foi construído pra ganhar. É, tão somente. Um trabalho magistral de perfeito equilíbrio entre enredo e técnica, dedicação óbvia de excelentes atores na construção de um expetáculo (com o perdão da ambiguidade).

O filme trás o drama, destilado num refinado humor negro, do ator Riggan Thomson (Michael Keaton), um veterano das telas, estigmatizado por um personagem, o super-herói Birdman, ainda que este papel tenha mais de 20 anos (1992), ano que, coincidentemente, ou não, Michael Keaton interpretou Batman.

Com esta ironia o filme adentra no calabouço labiríntico do ego do personagem, que às vezes se confunde com o ator. Mas qual ator? Um ator que interpreta um ator interpretando uma peça exige bem mais que habilidade, exige entrega.

Logo de início fica claro o desespero de Riggan Thomson em querer fazer algo. O que exatamente, ele mesmo não sabe. Perdido entre notoriedade, relevância e as conturbações sísmicas do âmbito familiar precisa administrar uma peça teatral na Broadway.

Trabalhando com um plano sequência longo e contínuo, como se filmado em única cena, os personagens não conseguem contornar a história, tragando o espectador a um novo e conturbado mundo, onde se precisa admitir que os personagens provavelmente existem, ou poderiam (reforçando essa ideia, a trilha sonora se dedica a solos de bateria que ditam o rito das cenas, numa fina ironia cômica. Bem como todo o filme foi gravado com luz natural). Assim, a cada problema é necessário uma solução e, não vindo facilmente, os conflitos internos são acessíveis ao público.

Entre tantos problemas que margeiam a estreia da peça, o elenco perde um personagem. Eis quando entra em cena Mike Shiner (Edward Norton), com mais uma deliciosa ironia já no nome do ator/personagem. Jovem, eloquente e cheio de si, a presença do brilhante ator atormenta o atribulado ego do velho super-herói.

Deflagra-se então o conflito interno de Thomson, que como ator, leva aos palcos suas desordens, provocando mudanças em seu comportamento. É quando fica claro que à vezes pode ser difícil a um homem ter muitas vidas. Viver outros mundos e sonhos pode muita vezes confundir que é ator e personagem. Shiner chega a dizer que apenas no palco não interpreta, enquanto Thomson, dando conta de sua vida, parece ter, inconscientemente, vivido todos os âmbitos de sua peça.

A sensação de não mais servir, de ser superado alimenta boa parte desses dramas. Sentir-se descartado, ser chamado de nada e pífio colidem frontalmente com a alma de qualquer pessoa. A realidade atirada na cara, ainda que não real, mas meramente o que outrem acredita, machuca e confunde, terrivelmente. É como a criança que constrói um castelo de cartas e o ver derrubado. Como o homem maduro que, de repente, deixa de ser importante na vida de alguém. Quando o Amor volta a ser criança e joga pedras na vidraça, querendo atenção.

Neste clima caótico, Thomson ameaça implodir e é quando, paradoxalmente, se torna protagonista. Mas aí o chão já é supérfluo e ele decide voar.

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