Blow-up (Itália, Inglaterra, 1966)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Blow-up (Itália, Inglaterra, 1966)

24 de Setembro de 2017 às 23:35

Há uma infinidade de obras que querem retratar a vida. Não pretendo aqui pontuar limites, mas fazer desta sentença um argumento estilístico para que se chegue ao tema de minha explanação - por demais metalingüística - sobre este filme cujo enredo aborda o limite entre arte e realidade.

Imaginem como um registro estático, uma fotografia, seria capaz de ilustrar um acontecimento dinâmico, e que este material servisse para a realização de um filme.

Isto foi possível porque Thomas, personagem principal de Blow-up, em uma cálida manhã de domingo, decidiu apreciar os fugazes acontecimentos de uma romântica Paris. Nada há de incomum em vagar pela cidade sentindo a brisa da manhã se não fosse o fato do fotógrafo, um grande expectador da vida, terminasse por retratar não a natureza ou movimento habitual de seus pares, mas indícios do que poderia vir a ser um crime.

A partir deste enredo aparentemente simples, Antonioni desenvolveu uma complexa trama de ficção que, a todo o momento, está em diálogo com o papel do artista como criador de acontecimentos e personagens.

Seguindo a história, até então pouco há de surpreendente na presença de crimes ou transgressões no mundo da ficção, afinal a arte é rica em histórias deste tipo. Desde a bíblia que relatou a traição de Caim até Dostoieviski que elevou com Raskonikoviski esses “desvios” do comportamento, não são poucos os relatos de personagens que burlaram as leis pelos mais diversos propósitos.   

Entretanto, há um ponto fora da curva, ou vários, nesta obra que a faz digna de ser discutida e esmiuçada até não mais bastar. Para isso iniciemos “por esta ponta, a detrás, a do começo, que afinal de contas é a melhor das pontas quando se quer narrar alguma coisa”.

Antes de tudo, “Blow Up” é inspirado no conto “As babas do diabo” de Julio Cortázar. Na época, Antonioni sugeriu a seu produtor que adquirisse os direitos autorais da obra para filmar um dos mais enigmáticos textos do argentino. Embora freqüentemente confrontemos o audiovisual com a literatura, poucas são as vezes em que paramos para elevar o filme além da escrita. Digo isso pois Blow-up foi muito elogiado pela crítica especializada e até hoje muitos não sabem que a idéia germinal tivesse partido de uma obra escrita..

Explanando sobre “As Babas do diabo”, por onde se deve começar, muito mérito há no texto de Cortázar. Os cinco primeiros parágrafos divagam sobre a arte de narrar, mudando constantemente a voz e tempo narrativos, como prenúncio da complexidade dos acontecimentos. Importante notar que estas mudanças são feitas de forma proposital. A priori, a mudança do narrador, que mescla vozes em primeira e terceira pessoas simboliza ora o fluxo de consciência do protagonista, ora uma análise imparcial que o narrador tem de si mesmo; as alterações do tempo narrativo servem também como pistas para a compreensão dos acontecimentos e do trágico destino do protagonista. Esses detalhes perpassam o cuidado estético do texto para em última instância desafiar o leitor na construção do enredo. De fato, a compreensão da trama exige um esforço intelectual de quem lê, sendo esta uma característica constante dos textos do escritor belga-argentino   

O filme, por sua vez, não se contenta em seguir o roteiro original, e nem deveria. Como artifício metalingüístico, Antonioni promove mudanças no enredo, pois o cinema é arte distinta da literatura. Diferente do conto, a construção do protagonista é mais cuidadosa, cadenciada, e a cena principal trata de outro tipo de transgressão. Antonioni, um estudioso do cinema, utiliza estes recursos para dar força à linguagem cinematográfica, convergindo com Cortázar para edificar sua obra na metalinguagem, assim como fez o Argentino.

No filme, a “transgressão” e o desfecho do protagonista são diferentes da que se passa no conto. Se em Cortázar a história rende ao fotógrafo material para o próprio conto, em Blow-up Antonioni faz com que a história resultasse em um filme, que acabou por ser registrado magnificamente pelo diretor. 

Ainda como reforço de verossimilhança, Antonioni conta com a participação dos Yardbirds (primeira banda de Jeff Beck e Jimmy page) e Veruschka Von Lehndorff (modelo internacional) interpretando a si mesmos, em mais um artifício para confundir a vida com a expressão artística. Há de se notar também que o próprio Julio Cortazar aparece no filme, no papel de um operário na fábrica em que Thomas está fazendo um projeto fotográfico.

Em suma, Blow-up é daqueles filmes que extrapolam a obra original, mesmo esta farta de complexidade. Considerado o melhor trabalho de Antonioni e o melhor texto de Cortázar, blow-up/as babas do diabo serve para aqueles que insistem em comparar filme e literatura, na esperança que houvesse um vencedor. Mas quem se atreve a dizer qual seria o melhor?

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