Cenas de um casamento (Suécia, 1973)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Cenas de um casamento (Suécia, 1973)

11 de Fevereiro de 2015 às 14:26

Ultimamente tenho acompanhado com fervor o cinema atual. A maioria dos títulos recém-realizados, bem como os diretores em atividade, me confidenciam o rumo para o qual o cinema está apontando. Há pouco tempo eu estaria falando de filmes “lançamentos” que se encontravam nas prateleiras das locadoras, mas não me cabe mais esta observação. Hoje falo de arquivos em HD e notebook, e ainda com alguma ressalva, pois ando desconfiado que em instantes já me tornarei obsoleto, assim como os videocassetes que me permitiram o primeiro contato com o cinema.

Em meio a tantas surpresas, algumas boas, a maior parte descartável; vem a notícia que Ricardo Darín vai estrear uma peça teatral que encena uma série produzida para TV, de Ingmar Bergman. Ao descobrir que se trata de “Cenas de um Casamento” resolvo revisitar alguns filmes do cineasta, pois emergiu em minha lembrança toda a estética do diretor sueco, cuja obra marcou minha transição do cinema-divertimento para cinema-arte.   

O diretor, até então conhecido por um restrito público, vê seu nome divulgado mundialmente quando Cenas de um Casamento entra na programação em horário nobre do principal canal de televisão da Suécia. Por que uma história produzida por um cineasta cuja obra é definida como chatíssima, segundo Paulo Coelho, estaria agora despertando tanta curiosidade do público em geral? O que a série tem de tão especial ao ponto de haver na Suécia um aumento considerável no número de divórcios e ver alavancar-se na Inglaterra a procura por terapia de casais?

O roteiro de Cenas De Um Casamento foi escrito por Bergman sem alguma pretensão. O diretor disse que o escreveu sem planejar um dia filmar a história de Johan e Marianne. Quando Bergman decide mandar o roteiro escrito para seus amigos próximos, surpreende-se com tamanha identificação dos leitores com os personagens principais.  

Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann) são casados e aparentemente felizes.  Ambos possuem emprego estável e boa renda financeira; têm uma boa estrutura familiar e são reconhecidos como modelo de um relacionamento sólido e duradouro.

Mas logo no primeiro episódio é possível notar certo desconcerto na relação. Johan, em um comentário burguês, afirma que são felizes porque são ricos; Marianne diz, com alguma covardia, que a felicidade é um estado de contentamento. Mais adiante, em uma discussão sobre um abortamento, há mais desequilíbrio: Marianne acusa Johan de ser indiferente quanto à vida a dois; Johan, em sua cegueira afetiva, suspeita que Marianne, por algum motivo que ele não consegue definir, encontra-se insatisfeita no casamento.

A dissonância aos poucos se manifesta. O expectador, por estar diante de uma obra teatral e destituída de qualquer artifício que porventura o distraia, segue a via-crúcis do casal. Em meio ao denso clima de tensão emocional, Johan confidencia a Marianne que há algum tempo mantém um caso extraconjugal. Como a premissa básica da fidelidade fora rompida, inicia-se um processo doloroso de desnudamento das almas dos protagonistas, levando-os à condições e papéis que fogem a sensatez e civilidade que eles aparentavam ter. Acusações, súplicas, compaixão, chantagem, truculência, agressões verbais e violência física agora fazem parte da rotina do casal. Tudo isto explícito em cada personagem, muitas vezes ao mesmo tempo, denotando a dificuldade de reconhecer seus sentimentos mais primitivos e os anseios que possuem um do outro.

A incomunicabilidade e imaturidade do casal levaram Bergman a defini-los como “Analfabetos emocionais”. O termo se justifica no fato do homem atual ser capaz de escolher uma boa carreira, resolver problemas matemáticos de alta complexidade, aprender sobre a origem da vida, respeitar a natureza e etc., mas não conseguir lidar com seus sentimentos mais puros e arcaicos como, por exemplo, paixão, frustração, raiva, carência e afeto.

A percepção é que Johan e Marianne, em meio a seus processos de autoflagelação e autoconhecimento, sempre se encontram em momentos diferentes de maturidade. Em tempos distintos suas concepções sobre a vida e o mundo se aproximam, mas nunca se concordam no tempo presente.

A série é uma experiência única e se divide em seis episódios: “Inocência e Pânico”, “A Arte de Empurrar as Coisas para Baixo do tapete”, “Paula”, “O Vale de Lágrimas”, “Os Analfabetos emocionais” e “No meio da noite Numa Casa Escura em Algum lugar do Mundo”. Em todos os momentos de tensão, o olhar de Bergman se sobressai, com seus close-ups magistrais, parece captar nas feições os conflitos interiores e a essência dos personagens: “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo podia se andar nu”, afirma Nelson Rodrigues.  Nada passa despercebido pelo crivo da câmera e nós, espectadores, regozijamos cada sorriso forçado, uma lágrima derramada, um olhar de desespero. Os protagonistas podem dissimular e enganar um ao outro, mas não conseguem iludir o público. Tamanho é o realismo das atuações que, em algumas cenas, os personagens parecem ter vida-própria e aparentam não estar seguindo nenhum roteiro pré-definido.

Embora alguns críticos tratem Bergman como ultrapassado, impossível não reconhecer sua contribuição para o cinema. Contemporizando, os vanguardistas de hoje se tornarão os clássicos de amanhã. Aqueles certamente não existiriam sem a contribuição de talentosos diretores de outras épocas. Desta forma, a inovação de Bergman é ponto central na história do cinema, posto que o diretor “intelectualiza” as temáticas em seus filmes. O esforço para compreender seus filmes talvez seja proporcional ao empenho do diretor em exercer seu ofício, termo que o Godard negava quando se referia a Bergman: “Cinema não é um ofício. É uma arte”. Assim sua obra fica marcada por narrativas complexas e uma forte exploração da linguagem cinematográfica. É impossível se deparar com a obra de Bergman e não se sentir internamente transformado.

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