CRONICAMENTE INVIÁVEL: O UM ANEL

Por Wilson Araújo, em CONTOS

CRONICAMENTE INVIÁVEL: O UM ANEL

09 de Março de 2016 às 22:24

Xico Wilson (sim, com “X”, senão ele se zanga) é um senhor aposentado, pra lá dos sessenta, com cabelos e disposição de quarenta, seis filhos (três casados, quatro formados), um neto e dois casamentos na bagagem. Ex rei bancário, quando podia comprar um Opala zero de dois em dois anos, regressado há trinta anos em Teresina, casa boa, em bairro tranquilo, amigo dos vizinhos.

Xico Wilson, 99% gentleman, pai solteiro, gente boa e petista voraz. Mas aquele 1%, aquele “genezinho” barulhento da boemia não lhe abandona. Contava, quando trabalhava como bancário em São João dos Patos (nos efervescentes anos 70), que ele e os demais bancários que moravam juntos, por falta de um freezer, enchiam a geladeira de cervejas às quintas e a mantinham em total esquecimento até o sábado e ai de quem a abrisse.

De volta à capital piauiense, casado pela segunda vez e numa sucessão de quatro filhos, um dia lhe era concedido, quase que divinamente, para a boemia. Nada de devassidões, sentar com os amigos, beber e tesourar, uma tarde e início da noite. Primeiro veio a Turma do Gogó, no bar do Lincon, bar pequeno, onde às vezes se sentava em tamboretes de couro de bode. A Turma do Gogó se foi (apenas em nome) e os membros se reorganizaram no Bar do Carlito, a um quarteirão de distância, com o provocativo nome de Conciliábulo. Nome que gerou, em pleno século XXI, a ira de um clérigo, tal como um inquisidor, por conta de um chaveiro. Mas isso é tema de outra história.

Xico Wilson, todo sábado acorda cedo, lava carro, toma banho, vai ao supermercado (um vício ‘inlargável’ deste homem), compra isso, compra aquilo, resolve qualquer coisa, volta, toma banho e meio dia, doa a quem doer, taca-se ao bar do Carlito e por favor que se resolvam, porque é até de noite.

Rotina sagrada, mesmo quando os filhos eram pequenos, sendo pai solteiro, pegava a molecada na escola, rebolava dentro de casa e ia-se dar ao deleite báquico moderno entre goles de cerveja gelada, reconfortando-se em cadeiras de plásticos carcomidas, como fossem essas a poltrona almofada dum rei ou sheik que desfruta naturalmente de sua majestade inerente, e garfadas do prato do dia (sim, porque toda semana um membro é responsável pelo almoço dos demais).

Haja sol, haja chuva, nada o impede de sair sábado meio dia. Nem doente:

-- Sem bebidas – diz o doutor.

-- Nem uma cervejinha – refuta Xico Wilson, que apesar de tudo, cuida bem da saúde.

-- Não, não pode.

-- Mas é só um dia na semana!

-- Sendo assim... não.

-- Nem um whiskinho?

-- Já disse que não.

-- Uma dosinha, pra não passar batido.

-- Olha, não... quer saber, um whisky pode. – conforma-se o doutor numa briga que sabia que iria perder.

Sendo assim, Xico Wilson, proibido de beber, chega ao bar do Carlito e toma um litro inteiro de whisky com um amigo.

Isso aconteceu algumas vezes nesses anos, já que a paixão por cerveja é irremediável. Foi, portanto, num desses fatídicos dias que levando o copo de whisky à boca, deu-se o causo:

-- Pessoal, perdi meu anel.

Explica-se. Xico orna em seu anelar esquerdo um anel de ouro com brilhante, belíssimo, que nunca sai do dedo. Conta-se que, retirando o anel, Xico voltaria a envelhecer como um mortal qualquer.

-- Com assim? – perguntam.

-- Meu anel, caiu do dedo.

E vira um auê. As buscas são generalizadas, todos se voltam a procurar o anel como propósito de vida, vira uma caça. Debaixo das mesas das cadeiras, panos, dentro dos bolsos, isopores, carros, freezers, pelas calçadas, ruas e banheiros. NADA.

A quem diga que o Um Anel é traiçoeiro.

Gerações inteiras de bactérias e pequenos seres já haviam se passado, o Sol já baixava e as criaturas da noite já ululavam, as cervejas esquentaram, o gelo aguou o whisky quando as busca terminaram e Xico Wilson, deu o anel como perdido.

Foda, diriam os bocas-sujas. Mas Xico Wilson, gentleman, pronunciou no alto de sua frustação:

-- Pombas!

E assim se terminou o dia e passou a semana. Sem anel e tocando adiante, porque a vida é jogo que segue.

Sábado seguinte, ainda sem poder beber, Xico foi tomar seu whisky. Red Label comprado. Isopor a postos. O amigo que lhe ajudaria na tarefa rasga o saco e despeja o gelo. Conversa vai e vem. Música, futebol, zueira, política (era nesse ponto que tentativas de assassinato ocorriam), garrafas de cerveja e goles de scotch.

Copo do amigo seca, ele põe a dose, algumas pedras de gelo. Toma um gole. Engasga-se. Tosse um pouco, mastiga algo duro.

Cospe. Cai sobre a mesa, pesadamente, o anel perdido. Todos atônitos.

Explicações? Esqueçam.

Apenas algumas risadas, expressões de incredulidades e tiração de sarro. Xico Wilson coloca o anel no dedo e voltam a beber.

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