Cronicamente Viável: O Arrebatamento

Por Diego de Montalvão, em CONTOS

Cronicamente Viável: O Arrebatamento

27 de Abril de 2016 às 01:49

Eu me sentia melhor quando vivia à espera de algo.
Toc, Toc, Toc - Passa das sete, Júlio! – Despertou-me o vizinho.
Cansa-me seguir a rotina. Numa cidade pequena, de pessoas pequenas, é natural se acostumar com uma vida pequena - martelo em minha cabeça. Penso ser vantajoso fugir do que é comum. Talvez justifique acordar ainda ébrio, resultado da fuga do dia anterior. Visto meu terno. Hoje dispenso a gravata, pra mudar um pouco. Penso na metafísica e na imutabilidade das coisas. Cadê minha gravata?
Toc. Toc, Toc – Ainda na cama, Júlio?
Minhas manhãs são exercícios de auto-conhecimento. Em meio ao amargo do álcool que permanecera em minha boca, tento recordar os acontecimentos da noite passada. Quero reconstruir minha personalidade: no banho lembro quem sou; quando me visto indago o porquê do meu ofício; no caminho do trabalho só quero desistir e voltar pra cama; no emprego já estou ansioso com a noite que me aguarda. Não dou a mínima sobre fatos externos a mim. Acendo um cigarro antes de passar um pente no cabelo. Primeiro o dever, prazeres depois.
Incomoda-me não lembrar de ontem. Sempre fico na quinta dose. Interrompo alguns dias na quarta. Não quero soar uniforme. Mas um dia cinco e noutro quatro, dá no mesmo. Tudo acaba sendo uma repetição. Não sei se este Insight me tem feito ir além da conta. Atravesso a ponte lotada e lanço meu olhar em busca de um contrapeso a minha carga interior. Procuro algo que encerre meus pensamentos, como o Aleph de Borges. Indgago se Pi divagara tanto para constatar algo universal? No meu entender, só a tristeza é universal. Tanto faz. O que o universo tem a ver comigo? Vivo apenas dentro desta caixa craniana. Mesmo assim gosto de me aventurar nos lugares à noite. Sinto-me relaxado ao ver o caos do dia se acalmar no crepúsculo. Apetece-me seguir o mesmo percurso em horas mais cálidas. Reminiscências. Acho que a cidade segue meu ritmo, ou eu o da cidade: durante o dia o imbróglio, quando todos querem algo; à noite ninguém me enxerga, posso ser quem sou: imperfeito e vazio tal qual a cidade.
No trabalho, vem o primeiro que me exige. Sinto-me desconfortável. Estou sem minha gravata. Ainda não me sinto desperto. Entre o estado de sonho e vigília, aquele estranho me indaga sobre o que o aflige. Escuto educadamente. Meu trabalho é igual todos os dias. Enquanto o interlocutor se expressa, repasso na memória os acontecimentos de ontem: uma desconhecida aportara em minha mesa. Não era tão estranha, eu a conhecia de outros copos, mas do mesmo bar. Falou-me e eu sabia o porvir. E assim escutei, fingindo curioso. Disse-me de experiências extracorpóreas com ácido lisérgico e, embora nada tenha me afetado, aparentei surpresa. Fui ator, figurante, é claro. Deixei-a falar pelos cotovelos. Lembrei-me das missas que ia quando criança, nas quais o vigário não dominava o sermão, perdendo-se no costumaz defeito dos vaidosos: mais desenvoltura e menos conteúdo. Eu via as sinapses de seu cérebro se formarem, enquanto escutava aquela conversa entediante que me engolia. Pensei nos loucos aprisionados que Pinel libertara. Aquela jovem era acidentalmente feliz de ter nascido séculos depois do psiquiatra. Em outra época, estaria presa a um grilhão, confinada em algum galpão, isolada do mundo. Agora vaga a esmo e divide suas mazelas com um qualquer. Ontem comigo.
Não tenho ideia por quanto tempo aquela sabatina se estendeu. Maldito Blackout. Não costuma acontecer. Não sou médico, nem por isso deixo de imaginar que exista um mecanismo fisiológico de defesa que lance um véu negro e limite a consciência, já exausta, para proteger a alma, em detrimento do físico. Meu corpo manteve-se presente, automatizado, sem comando. Voltei à tona esta manhã, com a voz do inquilino que compartilha o apartamento.
O sopro do meio-dia singrou a janela da repartição. O sol escaldante veio trazer o aviso: urgência da hora e da fome que aturde. Há de se comer. Alimento pro corpo e descanso pra mente. Circundo a praça do Fripisa, logo estou na Álvaro Medes, número 513, onde meu estômago espera por mim, na casa de minha mãe.
Durante o almoço ouvi no noticiário sobre um crime cometido na vizinhança. Estava a almoçar com minha mãe como faço todas as quartas-feiras. Na mesa, três lugares para duas pessoas. Minha mãe ainda crê que eu possa aderir ao matrimônio. De início me sentia incomodado com a posição autoritária de minha genitora. Hoje não tenho mais forças. Até acho melhor. Não preciso mais mentir. Antes eu inventava relacionamentos fúteis e desilusões amorosas para fundamentar minha solidão. Hoje basta atravessar a porta da casa para que o som de meu passo ecoe solitariamente na casa e a faça perder a esperança.
- Como vai o trabalho, Júlio? Perguntou enquanto me servia.
- Tenho bastante serviço. Estou pensando em mudar de ramo. –Lamentei enquanto sorvia uma taça de vinho.
-Estou te achando muito abatido. Lembre-se que nestes tempos de crise um emprego como o seu é desejado por dez em cada dez pessoas. Por que está sem a gravata da quarta-feira?
- Usei-a ontem e não a encontrei esta manhã. As outras estavam sujas e tive de sair sem nenhuma.
Continuou falando das garantias de se ter um emprego público. Lembrou pela enésima vez que se meu pai, falecido, enveredasse por este campo, não teria sido um fracassado. Concordei. Engoli a refeição misturada aos meus contra-argumentos para não soar rebelde. Quis descansar por uns dez minutos. Traguei um cigarro. Ruminei alguns segundos e cri que me esgotaria menos se saísse àquele instante. Vesti meu terno e saí decidido a nunca mais voltar, como tenho cogitado fazer nos últimos anos.
Resolvi não retornar ao trabalho à tarde. Em vez de seguir à Frei Serafim, desci a Coelho de Rodrigues rumo à Casa da Cultura. Não passava das duas da tarde quando adentrei uma sessão matinê. Apreciei Festim diabólico, de Hitchcock. Nunca passo da última fila e sempre me levanto antes do fim da sessão. Achei qualquer coisa de serenidade naqueles dois jovens. Contornar a invariabilidade da vida e dobrar o tédio me cativou. Comecei a imaginar-me naquela situação e naquele momento fazia sentido, mesmo que me custasse a liberdade, cometer uma transgressão. Cheguei à conclusão de que não estava a raciocinar corretamente. Fui seguindo meu sapato gasto, a vista de me recolher. Peguei o primeiro táxi que cruzou minha rota. Segui o caminho de casa, desci duas quadras antes, querendo me passar despercebido pelos vizinhos. Subi as escadas e encontrei-me sozinho no apartamento. Tomei um café antes de cochilar, por menos de um quarto de hora, pois batiam à porta.
Demorei a atender na esperança de que desistissem. Percebi que a persistência do visitante era maior que minha misantropia. Pus meu olhar à janela e avistei vários carros da polícia circundando a rua. Ao abrir a porta encontrei me face-a-face com um corpulento comissário da polícia que me mostrava foto de um cadáver. Naquela imagem reconheci minha gravata em volta do pescoço da jovem com quem cruzei na noite anterior. Quedei imóvel e senti um abalo violento no epigástrio, que me fez vomitar. Atônito, pedi com um sinal que esperassem na sala. Caminhei flutuante em direção ao meu quarto. Deitei-me e procurei o lençol para me aquecer daquele frio que invadira minha lombar. Desejei que tudo aquilo não passasse de um pesadelo, esperando misericórdia. Após alguns segundo percebi-o alto na penumbra do quarto. Esperei tranquilamente ser abordado e levado à delegacia, pois assenti que não suportaria o fardo daquele terrível acontecimento, embora o aguardasse, ansiosamente, por toda a vida.
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