Depois eu venho pegar o restante...

Por Leandro Lages, em CONTOS

Depois eu venho pegar o restante...

12 de Maio de 2023 às 19:19

Aquele câncer a consumia há tempos. De início uma pequena e inofensiva mancha no rosto camuflável com maquiagem. Depois uma ferida que não cedia a pomadas e nem a outros medicamentos.

O exame revelou a sua quase sentença de morte. Não comentou com ninguém. Chorou sozinha várias noites não dormidas. Guardou para si o resultado e iniciou o doloroso tratamento.

Nas primeiras sessões o mal parecia regredir, mas logo retornava agressivo, como se apenas tivesse recuado para tomar um fôlego e avançar calcinante a corroer a sua face.

Como se não bastasse o mal originado de dentro do corpo, uma covardia veio de fora e a atingiu no bolso. O plano de saúde se recusava a cobrir as vultosas despesas médicas.

Imóveis, carros, reservas financeiras, empréstimos bancários. Tudo convertido em dinheiro para bancar o tratamento que prometia prolongar a vida.

Quando não tinha mais nada, consultou um advogado. Descobriu que poderia forçar o plano de saúde a pagar o tratamento e ainda ser ressarcida do que havia desembolsado, além de uma tal indenização por dano moral.

A liminar veio rápido. O magistrado nem sequer conseguiu ouvir a verborragia jurídica do advogado, impactado pela aparência daquela gentil senhora cadavérica e de rosto disforme. Mandou o plano cobrir o tratamento e restituir de imediato os valores pagos pela paciente.

Após o plano de saúde efetuar o depósito judicial, dirigiu-se, alvará em mãos, para receber o seu dinheiro.

Apresentou os documentos no guichê do banco e informou como o dinheiro seria distribuído: boa parte para crédito em sua conta bancária, um percentual para a conta do advogado, um tanto para a conta de uma instituição de caridade, vários boletos vencidos para quitação e uma quantia em dinheiro vivo.

Recebeu o dinheiro, conferiu as cédulas uma a uma sem pressa, dobrou o maço com cuidado e colocou em sua bolsa. Antes de sair, olhou para o caixa que lhe atendera, agradeceu e se despediu. Já ia se retirando quando voltou ao caixa e lhe disse com olhar firme e apontando o dedo indicador: “ainda retornarei aqui para receber o dano moral”

Mas o tempo lhe foi desfavorável. Não resistiu ao passar dos anos e tombou em guerra na travessia das variadas trincheiras processuais. Coube aos herdeiros cumprirem a promessa de retorno ao banco para recebimento do dinheiro pelos danos morais que ela tanto sofrera. Alguém precisava honrar a sua palavra.

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