ELLE ( França, Alemanha, Bélgica, 2016)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

ELLE ( França, Alemanha, Bélgica, 2016)

19 de Outubro de 2016 às 03:00

Don't you Think it's pretty strange?
All got something to hide.
Cry Baby, Cage the Elephant
Dentre as muitas características peculiares do ser humano, sonhar talvez seja a mais curiosa de todas. Pobre é o espírito do homem que não sonha, dizem. Torcemos para que o futuro, ou a modernidade, traga ares mais salutares. Em âmbito individual, talvez sonhar nos dê conforto, mas se transpormos esta ideia para o plano coletivo, nos deparamos com um cruel paradoxo. Os novos tempos têm trazido mais angústia do que alívio e mais sofrimento do que paz.
O último trabalho de Paul Verhoeven é um ótimo exemplo da problemática das relações humanas neste novo tempo. A trama aborda o círculo social de Michèle (Isabelle Huppert) e seus relacionamentos conflituosos nas esferas familiar, profissional e de amizade. Michèle tampouco demonstra algum remorso ou auto-conhecimento. Aparentemente feliz, se sente acostumada e humanizada com esta vida turbulenta na qual todos que a rodeiam também compartilham inúmeras falhas de caráter.
Michèle é divorciada e co-diretora de uma empresa de jogos de videogame, onde divide com Anna a direção executiva da empresa e também seu marido, Robert, sem o consentimento desta; seu pai é um serial killer moribundo que se encontra na prisão, enquanto a mãe mantém um estilo de vida hedônico pautado no sexo; o filho explosivo, Vincent, é casado com Rebecca, que se encontra grávida e espera um suposto neto de Michèle; e seu ex-marido é um escritor pouco famoso, que não consegue transformar suas frustrações e questionamento existencial em matéria-prima literária. Completando a seara, Michèle é vítima de um estupro cujo autor se encontra mais próximo do que se imagina.
Nesta jornada em que se busca abordar os mistérios que circundam as relações humanas, há inúmeras obras cinematográficas importantes em que podemos situar Elle. A mais emblemática de todas é a trilogia da incomunicabilidade, de Michellangelo Antonioni. Nos três filmes do diretor italiano, “A Aventura”, “A noite” e “O Eclipse”, vemos, em plena década de sessenta, as dificuldades do homem moderno em manter uma linguagem comum sobre os sentimentos humanos em meio ao tédio que florescia à época. Nesta trinca de filmes reinava uma resignação poética, quase romântica, e até certo ponto distante da frivolidade do longa de Paul Verhoeven.
A forma agressiva e inconsequente na qual os personagens de Elle expelem seus temores fazem uma analogia com Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman. Na série do cineasta sueco, os protagonistas são denominados “analfabetos emocionais” posto que todos, assim como em Elle, são bem sucedidos e talentosos profissionalmente, mas não têm a mínima capacidade de lidar com os próprios sentimentos, mesmo os mais primitivos. Se na trilogia de Antonioni há o contentamento da autoflagelação, em Elle e em Cenas de um casamento, os personagens não se cansam de compartilhar suas mazelas e dividirem seu sofrimento com o próximo.
Voltando a questão de anseios e sonhos, é notória a sensação que o filme passa de estarmos nos tornando mais egocêntricos com o passar do tempo. Todo aparato tecnológico e evolução humana não têm servido para amadurecermos emocionalmente. Pelo contrário, hoje somos mais ansiosos e doentes do que antes, pois nossos sonhos se resumem a um planejamento ambicioso, palavra que atualmente soa como adjetivo. A falta de um sentimento coletivo é a melhor representação da decadência do homem moderno. Ainda há alguma esperança? O final de Elle é um bom começo e, talvez, a redenção.
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