Elza, Wilson e o Samba que Resistiu ao Tempo: A Curiosa Parceria dos Anos 1960

Por Gustavo Vidigal, em MÚSICA

Elza, Wilson e o Samba que Resistiu ao Tempo: A Curiosa Parceria dos Anos 1960

20 de Março de 2025 às 13:16

Na década de 1960, o Brasil respirava sob a tensão de um regime militar recém-instalado, mas, nas vielas do samba e nos estúdios do Rio de Janeiro, a música seguia pulsante, desafiando silêncios. Foi nesse cenário que dois ícones — ainda em ascensão — se encontraram para gravar um disco que, décadas depois, revelaria-se uma joia esquecida: "Se Acaso Você Chegasse" (1968), fruto da improvável e genial parceria entre Elza Soares e Wilson das Neves. 

Elza, à época com 30 anos, já carregava nas costas a fama de "a mulher do fim do mundo", título que a acompanharia eternamente após sua performance arrasadora no programa de Ary Barroso, nos anos 1950. Sua voz rouca, comparada a "uma lagartixa em brasa" por críticos, era um instrumento único, capaz de mesclar dor e ironia. Wilson das Neves, então com 32 anos, não era apenas um percussionista brilhante, mas um compositor de mão cheia, dono de um humor ácido que permeava suas letras. Juntos, eles criaram um álbum que unia samba tradicional, toques de jazz e uma pitada de ousadia. 

O Álbum que Desafiava os Clichês 

Lançado pela Odeon, "Se Acaso Você Chegasse" trazia 12 músicas, mas a faixa-título, composta por Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, roubava a cena: Elza transformava a letra melancólica em um diálogo íntimo, enquanto Wilson equilibrava a batida com pratos suaves e surdos marcantes, quase teatrais. 

Curiosamente, o disco não seguiu o caminho da Bossa Nova, então em voga. Optou por um samba cru, às vezes até experimental. Em "Mulata", por exemplo, Elza improvisava vocalises que lembravam jazz, enquanto Wilson inovava na bateria, antecipando ritmos que só ganhariam espaço no Brasil anos depois. 

Conta-se que, durante as gravações, Elza insistia em repetir takes até que a emoção soasse "verdadeira". Wilson, por outro lado, brincava com os músicos para aliviar a tensão. Em uma cena memorável, ele teria dito: "Elza, se gritar mais, o estúdio desmonta!". 

Legado de Dois Titãs 

Elza Soares seguiu revolucionando a música até seu último suspiro, em 2022, enquanto Wilson das Neves, falecido em 2017, tornou-se referência como "o poeta da bateria". O álbum dos anos 1960, porém, permanece como um testemunho de sua coragem artística. Não à toa, em 2019, o selo Mr Bongo relançou o trabalho em vinil, celebrando sua mistura de samba, humor e resistência. 

Hoje, ao ouvir "Se Acaso Você Chegasse", percebe-se que Elza e Wilson não estavam apenas fazendo música: estavam escrevendo, a tambores e gargalhadas, um manifesto de liberdade. E o tempo, como bem sabem os sambistas, é sempre cúmplice das obras-primas.

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