Ensaio sobre a Cegueira (Brasil-Canadá-Japão, 2008)

Por Leandro Lages, em CINEMA

Ensaio sobre a Cegueira (Brasil-Canadá-Japão, 2008)

17 de Junho de 2015 às 16:35

Texto em homenagem ao SALIPI-2015

Há uma grande diferença entre “ver” e “enxergar”, talvez similar ao que diferencia “viver” e “existir”.

Da mesma forma que muitos contentam-se em meramente existir, deixando de viver plenamente, de igual forma alguns apenas enxergam as sombras do cotidiano, sem conseguir ver de maneira plena. Ideia similar consta na melodia da banda Los Hermanos: “É preciso força para sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê”.

Em “Ensaio sobre a cegueira”, filme dirigido por Fernando Meirelles e baseado na obra do escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, trabalha-se com esse jogo de linguagem.

O enredo aborda uma epidemia de cegueira que, repentinamente, atinge as pessoas de uma cidade moderna gerando um grande caos na sociedade. Não se trata de uma cegueira qualquer, mas de uma cegueira branca, em uma nítida contraposição à escuridão que usualmente acompanha o ato de não enxergar.

Temendo que a epidemia se alastre, o governo mantém os contaminados em quarentena. No início são poucos, mas logo o contingente aumenta assustadoramente. Ninguém pode sair do isolamento, sendo monitorados pelo exército que tem ordens expressas para atirar caso haja tentativa de fuga.

Logo começa a faltar tudo, inclusive alimentos e medicação, o que torna a vida na quarentena uma verdadeira selva. Apesar dos lampejos de civilidade e solidariedade, prevalecem os instintos primários de sobrevivência, com os homens se impondo à força para suprir suas mais básicas necessidades, inclusive sexuais.

Inexplicavelmente, a única pessoa não atacada pela cegueira é a mulher do médico que diagnosticou a epidemia. Tal situação a permite atuar na obra não só acompanhando o marido cego, mas também auxiliando as demais pessoas, presenciando o grau de selvageria humana e a rápida degradação dos valores sociais. Isso torna a obra bastante inquietante, possibilitando as mais diversas interpretações.

No momento crítico, Saramago demonstra que a verdadeira cegueira é viver em um mundo onde tenha acabado a esperança.

A partir daí, abre-se espaço para uma série de discussões sobre o sentido metafórico da cegueira abordada na obra, uma verdadeira crítica ao mundo contemporâneo em que as pessoas não percebem “que a estrada vai além do que se vê” e que viver representa bem mais que o mero existir.

O filme representa uma adaptação básica e fiel ao livro, não fugindo do enredo central. A cegueira branca, por exemplo, é bem explorada no filme com uma predominância de tons claros e brancos em várias tomadas, sendo esta a sensação experimentada por quem lê o livro.

Mas esta é a única sensação em comum ao livro e ao filme. Mesmo assim, méritos ao diretor Fernando Meirelles, pois Saramago é leitura para poucos, estilo ímpar de escrita.

Deve ser lido sem pressa, com a calma que permite perceber cada detalhe das frases que traduzem os sentimentos e as emoções descritas. Infelizmente não condiz com a tendência atual de leitura dinâmica e de informações sintéticas que apenas trazem sensações voláteis.

Enquanto o filme explora a inquietante sensação de cegueira e a luta pela sobrevivência, o livro nos faz refletir sobre o real sentido metafórico de uma cegueira representada pela insensibilidade, indiferença e descaso daqueles que só enxergam os seus próprios interesses, míopes de todo um mundo que nos rodeia.

Não poderia ser mais apropriada a frase de abertura da obra: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

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Post Scriptum: Cegueira também manifestada pela falta de visão dos que não apoiam ou não participam do SALIPI – Salão de Livros do Piauí, evento que, apesar das dificuldades, exalta a nossa cultura e insiste na esperança de manter vivo o prazer pela leitura como verdadeira fonte de educação e libertação do ser humano.

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