EXTRACAMPO: O idiota e seus delírios quixotescos

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

EXTRACAMPO: O idiota e seus delírios quixotescos

06 de Agosto de 2014 às 00:06

O grande Ariano Suassuna, numa entrevista concedida à Folha de São Paulo, em 2012, saiu-se com essa:

“Nunca olhei a internet. A velocidade da comunicação não é coisa boa. Arte exige vagar e dedicação exclusiva. Infelizmente, no território da arte, não existe democracia. Nem pode existir. Cervantes só existe um. Ninguém chega a ele através do computador".

Além de Cervantes, o escritor pernambucano também nutria grande admiração por Dostoiésvski. Umas das principais obras do escritor russo, O Idiota, de 1868, narra a história do príncipe Michkin, um jovem epiléptico que é a personificação completa dos ideais de altruísmo, abnegação e inocência e que por isso mesmo é ridicularizado pelos seus pares, taxado de “idiota” e internado em um sanatório.

Há uma nítida influência do personagem Dom Quixote na personalidade de Michkin. Ambos retratam (cada um a seu modo) a dificuldade de se manter generoso e íntegro em um mundo cada vez mais hostil a estes tipos de princípios (Estamos falando dos séculos XVII e XIX, respectivamente, época em que os romances foram escritos).

Em contraponto a estes ideais de solidariedade e renúncia dos personagens, estudos recentes, na área da psicologia comportamental, como os do professor Larry Rosen, da Universidade Estadual da Califórnia, revelam que as redes sociais têm tornado as pessoas cada vez mais narcisistas e antissociais, além de consumirem boa parte do seu tempo livre.

Ainda segundo o professor, o tempo de concentração das pessoas numa única atividade também vem diminuindo consideravelmente (uma média de 3 a 5 minutos), muito provavelmente pela característica fragmentada das “informações” disponibilizadas pelas tecnologias multitarefa.

O Idiota e Dom Quixote são alguns dos maiores clássicos da literatura mundial. Livros que tratam de questões absolutamente universais e atemporais e que têm influenciado vários escritores ao longo do tempo. Ariano Suassuna foi um deles. Provavelmente não haveria Chicó sem Dom Quixote.

Estas obras, além de o auto da compadecida, são de domínio público e podem ser baixadas e acessadas gratuitamente, a qualquer hora, de qualquer lugar, através dos mais diversos dispositivos eletrônicos (notebooks, tablets, smartfones,...);

É difícil imaginar um usuário médio da grande rede baixando ‘o engenhoso fidalgo dom quixote de la mancha’ e devorando suas mil páginas. É preciso bem mais que 5 minutos de concentração para poder realmente apreciar a obra. Ariano tinha razão “Ninguém chega a Cervantes através do computador”.

Se o personagem Chicó contasse a João Grilo que ele conseguia enxergar o futuro e que nele via as pessoas dos mais remotos lugares do mundo terem a possibilidade de se comunicar entre si e de obterem acesso às melhores obras já produzidas pela humanidade, através de uma simples tábua e que, ao invés disso, elas ficariam cada vez mais isoladas e vazias, certamente João Grilo o chamaria de Idiota com delírios quixotescos.

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