EXTRACAMPO: Ponto de partida

Por Wilson Araújo, em CRÔNICA

EXTRACAMPO: Ponto de partida

05 de Junho de 2015 às 14:18

Talvez uma das coisas que mais fascinam no cinema seja a capacidade de viver o que o que não podemos, ou estendendo o que disse Gullar, talvez seja porque a vida não basta. Não que se tenha poucas emoções ou momentos apoteóticos, o que não temos é o “clac”, o depois, a passagem do tempo que soluciona nossos problemas. A vida existe pra ser vivida e viver é deveras complicado, se vive, por vezes, mais em duas horas de cinema que cinquenta anos de existência, todo o resto, percebeu Sêneca, não é vida, mas mero tempo.

Há, todavia, um componente ineliminável na vida, uma coisa que redefine a existência e eleva o pensamento finito à beira da compreensão eterna, que permeia os homens e qualifica suas vidas como mão divina que acalenta o sono em noites tenebrosas e faz com que, ante a toda a massa caótica, corrupta, estéril e decadência hodierna, cresça algo como flor em deserto de concreto. A isso chamamos Amor e dele, principalmente, a capacidade de amar.

O Amor fascina desde a infância da humanidade e sempre foi tido como algo eterno, que sobrepõe sentimentos e reconstrói o caráter e o espírito do Homem. Na Grécia antiga o Amor era considerado o primeiro de todos os deuses e filho da beleza, sem pai e eternamente criança (inocência). O Amor cavalgava um leão, no claro ensinamento de que que este pode domar mesmo as bestas mais ferozes e bárbaras.

Não faltam, no cinema e na literatura, histórias sobre o tema. Muitas das frustações, desejos e vontades reprimidas das pessoas podem ser vividas plenamente no cinema. Mas, até que ponto ver é melhor que viver? A resposta, talvez esteja no “clac”, a placa de “anos depois” que redime todos os pecados e faz surgir epifanias e discursos arrebatadores em cenas de casamento e restaurantes.

Não temos isso. Em verdade, o que temos é o nó na garganta e mensagens ébrias de madrugada. Os desafios do mundo são encarados diariamente e vencidos com esforço e dedicação, gota a gota de suor. A escola leva 15 anos, não alguns segundos; o frio na barriga antes de ligar para aquela garota, algumas eternidades. E assim se vai tentando viver, lapidando e aprendendo, sonhando, domando dragões.

Mas, há ainda outro componente ineliminável na vida humana, uma enchente e paradoxos. Dos existenciais aos cômicos, da capacidade de rir da própria desgraça a lembrar de coisas em formato compacto. Depois de um tempo parece que de fato, a vida começa a fluir a partir de pontos de partida. A escola dura 15 anos, mas depois que acaba vira um “clac” e se lembra dela como um todo que passou e não mais como 15 anos de memória destilada em detalhes e pormenores.

E assim segue, vive-se um dia, um minuto por vez e tudo que passa parece entrar numa camada zipada, acessível pelos “clac’s”, contando histórias de décadas como fosse o hoje, “alguns anos depois”.

E um dia a gente foi criança e “CLAC!”, sou pré-adolescente, ginásio e “CLAC!”... mando bilhetes e marco encontros atrás da igreja da praça, dou um beijo e “CLAC!”... vem chegando vestibular, estudar 10 horas todo dia, sacrifício e “CLAC!”... lembra da festa do David? Gilete cega pra raspar a cabeça, mas foi bom pra caralho, “CLAC!” monografia, eita porra, dia desses foi a calourada, “CLAC!” foto do convite, quepe ao alto, baile de formatura...

“CLAC!”, primeiro emprego.

“CLAC!”, amor da minha vida.

“CLAC!”

“CLAC!”

“CLAC!”, engravidei

Vida - parte dois. Ponto de Partida. Aí se compreende a linha divisória e as fases passadas que um par de olhinhos e um choro estridente consegue fazer. Tem coisas que nunca se esquece, como o primeiro beijo e o primeiro porre (ou esquece!). Mas aquele choro, enrugado e roxo... doma dragões, cavalga leões.

E naquele momento fica claro que agora tudo começa a partir dali, o resto ficou num “clac”, suas vontades, manhas e seu sono. Ali a gente entende o que os gregos tinham por Anteros (o Amor compartilhado), e ‘de repente, não mais que de repente’, toda a vida é agora dois ou três, o valor de si é externo e lutamos por outro com toda a sinceridade do coração. Se isso não for o Amor na forma mais pura, vencendor do tempo e das bestas, que mais pode ser? Instinto? Não se menospreze, podemos muito mais.

É um ursinho, um lobo, um príncipe inconteste, com nome saxão, nome de guerras, forte, pra afirmar (e firmar) quem será. Começa com um grunhido rrrrrrrR e termina com o uivo aaaAUlllllllll...

RAUL.

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