
11 de Junho de 2025 às 20:32
O curta-metragem lançado em 1989 e dirigido por Jorge Furtado, “Ilha das Flores", é visto como referência para o cinema brasileiro justamente por seus diversos prêmios, sua abordagem singular e crítica ousada. Em apenas 13 minutos, o filme consegue guiar o espectador por uma narrativa acelerada, quase enciclopédica conceitual, irônica, com aparente objetividade científica. Mas por trás da linguagem didática e humorada, está uma profunda crítica às estruturas sociais que compõem o mundo capitalista.
O filme começa de forma simples: explicando o que é um tomate. A partir desse objeto comum, mostrando a plantação do senhor Suzuki, o curta vai tecendo conexões inesperadas com conceitos, como: trabalho, moeda, consumo e, no final, o lixo. A trajetória de um tomate, que foi plantado por um agricultor, comprado por um supermercado, selecionado para estar na mesa do almoço de senhora Anete, rejeitado por ela, doado para porcos e, enfim, separado para seres humanos, servindo como fio condutor para que o espectador perceba como o valor das coisas (e das pessoas) é determinado por sua utilidade, posse (ter dono \ subordinado) e seu poder de compra. Ainda que seja narrado com uma voz calma e meticulosa, objetificando e classificando tudo, o conteúdo do filme é tudo menos tranquilo, o caos da subordinação e escambo indireto.
Além da representação da sociedade e como essas ideias são aplicadas, as imagens de famílias em meio ao lixo, disputando restos de comida rejeitada pelos porcos, chocam pela crueza e são acompanhadas por uma trilha sonora desconfortável, reforçando o tom de denúncia que se constrói de forma gradual conforme o curta chega ao final.
O título do filme se refere à Ilha das Flores, um lixão real localizado em Porto Alegre (RS), nome que também contribui para uma grande contradição, tendo em vista que, imaginamos, com o nome Ilha das Flores, um local angelical e harmônico, ideia totalmente equivocada da realidade. A Ilha se torna uma metáfora poderosa para a marginalização humana. É lá que se encerram os ciclos de produção e consumo, local onde os tomates descartados por dona Anete vão parar, além de ser onde acabam as pessoas que estão fora desse ciclo. O filme expõe, com precisão, que não é a fome que separa seres humanos de alimentos, mas sim, a ausência de poder de compra \ capital. Essa distinção entre quem pode e quem não pode consumir é o eixo em torno do qual gira a narrativa. O curta não recorre ao sentimentalismo: ele se mantém direto, factual, quase mecânico, associando as coisas com seu devido conceito. Mas, justamente por isso, o impacto é profundo. O espectador se dá conta, aos poucos, de que a lógica apresentada no filme não é absurda nem distorcida, ela é a lógica real do nosso sistema econômico.
As pessoas na Ilha das Flores não recebem sobras de alimentos diretamente, recebem o que os porcos não querem comer, o insuficiente para um porco - que não tem o encéfalo desenvolvido, nem mesmo polegar opositor, sendo menos habilitado que um humano. Apesar disso, o porco consegue, por causa de dinheiro, ser mais digno de receber alimento. E esse detalhe é o que torna tudo ainda mais inquietante e agoniante. Por que os porcos comem antes de seres humanos? Porque pertencem a um dono. Já os humanos, sem dinheiro e sem dono, ficam por último. Essa comparação, tão cruel quanto verdadeira, é um dos pontos mais marcantes do filme. Essa crítica implícita no filme pode ser mais bem compreendida quando relacionada à teoria da mais-valia, desenvolvida por Karl Marx. Para Marx, a mais-valia é: o excedente gerado pelo trabalhador que não é pago a ele como salário, mas apropriado pelo capitalista como lucro. É o lucro extraído da força de trabalho, o trabalhador produz mais valor do que recebe.
O agricultor que planta o tomate é o exemplo clássico do trabalhador marxista: ele realiza o trabalho, mas não determina o destino ou o valor final do produto. O tomate passa por diversas etapas até chegar ao consumidor, e em cada uma delas, novos valores são acrescentados. Porém, quando o tomate já não tem valor de mercado, por estar maduro demais ou fora do padrão estético, ele é descartado, e só então pode ser acessado por aqueles que não participam do sistema de consumo. Ilha das Flores mostra o que Marx descreve: a alienação do trabalhador em relação ao seu próprio produto, e a centralidade do lucro na dinâmica capitalista. A existência das pessoas na Ilha das Flores é consequência direta de um sistema que não distribui riquezas conforme as necessidades humanas, mas sim conforme o valor e trabalho trocado pelo capital.
Ilha das Flores é uma obra que permanece atual e necessária. Ao fazer uso de uma linguagem aparentemente neutra, quase científica, o filme desmonta as estruturas mais desumanas da sociedade capitalista. Ele consegue provocar um incômodo profundo, não por ser exagerado, mas justamente por mostrar o óbvio que preferimos ignorar.
Ao relacionar a narrativa com a ideia de mais-valia, é possível perceber como o curta denuncia não apenas a desigualdade social, mas o próprio motor do capitalismo: a extração constante de valor do trabalho humano em prol do lucro. O filme nos obriga a enxergar que o problema não está apenas na pobreza ou na fome, mas em uma lógica que transforma tudo, até a dignidade humana, em produto de mercado, e essa lógica da mais-valia, conforme teorizada por Karl Marx, é exemplarmente ilustrada no curta-metragem Ilha das Flores, sobretudo na sequência em que o senhor Suzuki "troca” tomates por “muito” dinheiro, dona Anete "troca" perfumes por dinheiro, o qual utiliza para adquirir os mesmos tomates. Essa cadeia revela a aparência de uma relação de escambo mediada pelo dinheiro, mas escancara uma estrutura de exploração: o trabalhador, como Suzuki, não recebe o equivalente ao valor que produz, mas apenas uma fração dele, enquanto o excedente (a mais-valia) é apropriado por quem detém os meios de produção e circulação.
Diante disso, Ilha das Flores não é apenas uma crítica ao desperdício ou à miséria: é uma denúncia profunda sobre um sistema que hierarquiza vidas, atribui valores distintos a seres humanos e naturaliza isso. Ao escancarar a lógica da mais-valia, o curta nos convida a repensar não apenas o modo como consumimos, mas, sobretudo, o modo como produzimos / as “trocas” por dinheiro e as relações em sociedade. A indignação que provoca não deve ser passageira, mas transformadora e reflexiva, pois entender as engrenagens da exploração é o primeiro passo para romper com essas ideias. Em última instância, refletir sobre a mais-valia com a belíssima obra "Ilha das Flores” é enxergar que a desigualdade não é acaso ou falha do sistema: é seu mais fiel e verdadeiro resultado.
Link para o filme: https://youtu.be/h30BO_6kFNM?si=4jX36EaqKX6Td8rP
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