Jardim das Oliveiras

Por Márcio Barros, em CRÔNICA

Jardim das Oliveiras

25 de Outubro de 2017 às 16:13

Hoje faço 70 anos. Fora a artrose que me corrói as articulações e o embotamento da vista, vou bem. Nunca tive grandes expectativas, nem grandes aflições. Levo a vida que me foi posta sem resignação nem júbilo, como quem aceita o prato do dia de um restaurante qualquer de beira de estrada. Quando sair do trabalho às vinte horas, passarei no bar do Clóvis, como faço todas as noites. Sentarei à mesa com os camaradas de sempre, e às 22 horas me despeço e vou à minha casa, consumir o resto das horas. Pra mim é apenas um dia como os demais.

Acordo, diariamente, às cinco e meia. Tomo banho, me visto e vou ao mercado central pro café da manhã. No caminho passo na banca do Moisés e compro o jornal do dia.  Chego ao trabalho às sete, pontualmente. Passo a vista nos jornais, bebo alguns goles de café amargo e sigo até as vinte, com uma pausa para o almoço e para a sesta. Essa tem sido minha rotina por pelo menos trinta anos. Raramente negligencio a ela. A rotina talvez seja meu único apego, minha cachaça. Sem ela me desoriento, fico tão perdido como um vira-lata perambulando em meio à barulheira de fogos numa procissão. Os únicos acontecimentos que modificam esses hábitos encravados são os velórios da funerária Jardim das Oliveiras, da qual sou Sócio Administrador desde os meus quarenta anos.

A imagem dos primeiros dias de trabalho ainda se mantém vívida em minha memória míope talvez mais que o dia de ontem. Foi lá que descobri minha vocação. Lembro que a primeira semana foi tranquila. Conhecia bem as atividades burocráticas que deveria exercer. Tive que me inteirar das especificidades do ramo, mas peguei rápido. No fim das contas todo comércio é igual, só mudam os tipos de aborrecimentos. Pelo menos, nesse, os principais usuários não voltariam depois para reclamar.             

Logo na segunda semana chegou o primeiro cadáver. Um senhor de sessenta anos que falecera de AVC, há poucas horas. Assisti a todo o ritual funerário, com um empregado da companhia me explicando todos os procedimentos: A tanatopraxia, a recepção dos familiares e amigos, o velório e o sepultamento ao final.  A preparação do corpo, apesar de toda a estranheza causada à primeira vista, foi simples e rápida. Os profissionais eram bem experientes. Nem pareciam manipular um cadáver. Finalizado o trabalho e organizada a sala do velório, era hora de receber a família.

Entraram uma senhora de cinquenta anos e sua filha de uns vinte. Ambas bonitas e bem cuidadas, vestidas discretamente. Ao ver o corpo estendido, a moça não conteve a forte comoção, correu e se debruçou sobre o caixão, colando seu rosto no do pai. Derramando um choro silencioso e lento, despejando sobre os restos mortais todo um turbilhão de sentimentos que sua alma estraçalhada não conseguia verbalizar. A mãe a abraçou forte, beijando-lhe o rosto, segurando as mãos do marido como se tentasse religar um elo desfeito, eternamente partido.

Ao ver as duas ali, abraçadas, compartilhando as desgraças da fatalidade, espremendo os restos da alma dilacerada, fui fustigado de uma maneira que nunca imaginei ser possível. Àquela idade já havia chafurdado na obscuridade da sarjeta tempo suficiente para perder qualquer ilusão quanto à nobreza e dignidade do caráter humano. No entanto, a beleza da imagem triste daquelas duas mulheres despidas de qualquer sentimento que não a angústia e o desespero, me redimira.  Antes disso, os únicos velórios que presenciara haviam sido, ainda criança, das pessoas que me eram próximas. Mas as imagens dessa época me apareciam borradas, contaminadas de cenas imaginárias ou sonhos. Não me recordo bem. Eram dias confusos... Nada parecido com o que acabara de presenciar.

Ao longo desses anos acompanhei praticamente todos os velórios do Jardim das Oliveiras.  O mais surpreendente é que ainda me tocam profundamente. Costumo contemplá-los à distância como quem admira um por de sol ou um grande quadro pintado a óleo. Os mortos parecem ser todos iguais, estendidos quietos no centro da sala. Mas cada um dos que choram pelo falecido mostra-se único na sua miséria. Dali a alguns instantes voltarão a suas mesquinharias, cheios de vaidade, estupidez e covardia, como todas as outras pessoas. Mas naqueles momentos parecem estar fora do espaço e do tempo. Purgados de tudo que é abjeto, vil. Desolados de si mesmos e do mundo.

Na parede do meu escritório há uma réplica da Agonia do Jardim de Andrea Mantegna. É um belíssimo quadro. Mostra a agonia de Cristo, sentindo a inevitabilidade da morte, enquanto o mundo ao redor permanece indiferente e cruel.  Os dramas daquelas pessoas que via no Jardim das Oliveiras eram semelhantes. A única diferença é que eram obras de arte vivas, pulsantes. E, de certa forma, sou um privilegiado por poder admirá-las no meu ofício.

Mas acredito que dentro de alguns anos não me disporei mais dessas visões contemplativas. As cerimônias fúnebres estão ficando cada vez mais rápidas e frias. Tudo em nome da praticidade dos nossos tempos. Dia desses, folheando um jornal  depois do café da manhã, li uma notícia sobre os Funerais Drive Thru’s,  nos Estados Unidos. “Em Memphis já é possível se despedir do ente querido sem sair do próprio carro [...] a ideia é deixar tudo mais conveniente para as famílias que já estão sofrendo com a perda de uma pessoa amada” dizia a matéria. Creio que muito em breve essa “inovação” chegue por aqui também, pois a comodidade, a maior perversão do nosso tempo, é extremamente persuasiva.  Felizmente, até lá já estarei morto.  Não haveria mais lugar pra mim num mundo assim. O que me conforta é saber, ao menos, que, quando partir, o Jardim das Oliveiras fará um belíssimo trabalho, como sempre tem feito.

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