O Bracarense, 2015

Por Leonel Veloso, em CONTOS

O Bracarense, 2015

16 de Setembro de 2015 às 18:08

O BRACARENSE

                Mais um sábado na vida de Manuel. Que acordava às 06 e trinta, tomava banho e café, e lia O Globo do dia e pensava na vida, isso tudo quem o bem conhece já sabia. Trancava-se no banheiro Deus sabe lá para quê, já que há muito não sabia o que era companhia. Barba, unhas, bigode e careca eram seus cuidados e suas abluções. Sempre impecável, saía ao trabalho e, às 08 e trinta, já estava de pé, atrás do balcão, colocando em copos côncavos chopps dos mais calculados. E era este o seu trabalho: entornar chopp na caneca de futuros embriagados. Já o fazia há 35 anos e, com tanta perfeição, virava até objeto de decoração. Em meio à arte e piadas, um ou outro incauto sempre gritava: - Esse está aguado. Nem parece chopp do Braca. Era assim que o chamavam e vinha daí a sua fama. Nem por isso deixou de lado a ideia de se aposentar, abdicar-se do todo e deixar tudo para trás. Seria, pois, aquele, seu último sábado de trabalho.

                Vindo de Braga junto a refugiados, Manuel desembarcou na baía de Guanabara já tem lá seus 37 anos. Filho único, decidiu ver a vida com outros olhos. Abandonou mãe, cachorro, passarinhos e até o pai que nunca conheceu. Doravante no Brasil, conheceu Ermelina ainda em São Cristóvão. Sem metas, objetivos nem camisinha, engravidou a rapariga. E nem sequer se deu ao trabalho de conhecer o bruguelo. Mesmo assim, da pensão, ele nunca esqueceu: era rotina. Desde então não quis mais saber de mulher em sua vida. E virou um ranzinza. Dizia que ‘elas davam muito trabalho’. Foi ser engraxate, vendedor de rosas em porta de loja, estivador, operador de máquina de assar frango e açougueiro até perceber que fazia algo como ninguém. E com prática, observação, detalhamento, chegou à estupenda conclusão de que só ele conseguia colocar o chopp na tulipa de uma forma tal e seguindo critérios tais de que só ele dispunha. Era como se engavetasse verdejantes segredos. Nessa época, não havia aquela história chata da cerveja que oxidava, nem do lúpulo que estragava, muito menos daquele puro malte que causava. O negócio era chopp. Claro e sério!

                De tanto repetir e repetir e repetir, foi se transformando, ele próprio, em repetição. E virou o cara mais chato que se teve notícia. Fazia tudo igual, da mesma maneira, seguindo rituais. Passou a se queixar quando regras não eram bem cumpridas e querelava pelas menores atrocidades. Reclamava quando um cliente sentava na mesa e solicitava o cardápio de cervejas artesanais. Esbravejava quando alguém ficava gritando por seu nome, como se não escutasse. Empalidecia quando via aquela turma de jovens fumando, bebendo e discutindo atos banais do cotidiano. Perguntava-se por vezes: - Qual a necessidade disso? Pior que nada disso lembrava sua vida passada, seu filho ou sua ex mulher. Manuel, apesar da profissão, sempre se recusou a beber de sua própria fonte e se consternava ao perceber cinzas de qualquer tabaco. Errado também é quem pensa que ele era, então, um senhor saudável, esportista, jogador de tênis e críquete. Simplesmente, dedicava-se ao ócio e a fazer sempre suas atividades em peculiares rotinas. Transitava, assim, pelos mesmos caminhos de sempre e as horas do dia passavam conforme os dias presentes nas horas. Alimentava-se, por exemplo, no próprio bar. Dispensava feiras, frutas e supermercados. No lar, era o próprio que lavava e passava a própria roupa. Na televisão, nada interessava. Na Internet, lânguida pornografia lhe agradava. Saía do bar para casa. Da casa para o bar. Nada mais que isso.

                Foi então que, de tanto repetir, passou a querer elaborar um plano para sua vida. Isso quando já tinha na faixa etária dos 40 anos de idade. Disse que ia viajar, acessar o Leste Europeu e chegar até Sófia, conhecer o mundo desenvolvido em uma pacata cidade desenvolvida. E viver como era seu costume. Engraçado que seu desejo parecia claro: mudar de lugar, não de vida. Por seu turno, tudo aquilo que recebia passou a juntar em notas e moedas e a colocar dentro de suínos de barro. Passou a ficar consternado com o quanto as pessoas gastavam em atos que considerava infames. Negava, por exemplo, a arte em geral. Perguntava-se como pessoas conseguiam deteriorar suas finanças com discos, músicas, cinema ou teatro. Nunca ousou assistir a um filme do Fellini ou escutar o dedilhar de Chorare ou quiçá celebrar seu aniversário. Estar presente em um concerto só com naipe de metais? Asneira! ‘Dividir algumas cervejas com um amigo, conversar bobagens e resgatar a leveza encoberta pela fina poeira do cotidiano’? Nem se Paneloviski implorasse! Nunca ousou estar presente no show de seu artista preferido, simplesmente por preterir todos os artistas. Para ele, ‘era tudo perda de tempo’. Pensava: - De que adianta viver, se a vida é para morrer?

                E no seu sábado de despedida, serviu os dois chopps últimos justamente a mesa de dois clientes que sempre o irritavam muito. Esses dois, por sinal, sempre chegavam cedo, começavam com estilo, de fininho, comiam feijoada e libavam-se etilicamente até a completa ebriedade. Eram sempre os últimos a sair. E foram estes os únicos do bar a darem por sua falta. Mas antes de casa, então, Manuel passou na mercearia para comprar um refrigerante. Perguntava-se enquanto embebedava-se de soda: - Que se passa comigo? Ao interromper-se na esquina, foi surpreendido pelo estardalhaço de uma batida de carros. Ao olhar por onde, viu algo chegando muito rápido e que crescia não sabia como. O que era aquilo, afinal? Um pneu? Quase em milésimos de segundo, pensou: - Que merda! E morreu. Faleceu com a coronhada de uma grossa borracha.

                E naquele mesmo instante, com horários contrários de fuso, “uma turma mais simplória, público de sertanejo, axé, pagode, que bebia cerveja barata com camiseta apertada tipo jogador de futebol”, começava a gritar o nome de uma música brasileira em meio ao culto público europeu para um artista brasileiro que “não mais toca músicas em português”. Disfarçadamente, o cantor preferiu não executá-la. Mas resumiu: - Foi pro céu.

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