O futebol e as crianças de cabelos brancos

Por Leandro Maciel, em CRÔNICA

O futebol e as crianças de cabelos brancos

19 de Setembro de 2022 às 16:38

Meu padrinho tinha um mercadinho no bairro Acarape. Nos anos 1980 e começo dos anos 1990, eu ia muito lá. Não ainda para tomar cerveja, mas para ter a atenção de minha madrinha, brincar com meus primos e, eventualmente, muito eventualmente, dar alguma ajuda na labuta. No mais, ficava observando os adultos. Gostava de ouvir as conversas. Ficava circulando, arrumando uma mercadoria aqui, outra ali, mas de olhos e de ouvidos ligados na turma. Bastava juntar dois, para um terceiro sair de sua casa a pretexto de comprar um item que faltava para o jantar e lá ficar o resto da noite. Mas, nesse caso, as esposas não se zangavam: para o Mercadinho Reis podiam ir.

Eu achava tudo aquilo muito interessante. Mais do que clientes, eram amigos que se reuniam nesse ponto de encontro sagrado. As conversas eram em volume alto, como também as piadas e as provocações. No alto dos meus dez anos de idade, todos ali eram uns vovozinhos. Para uma criança, um vovô é aquela pessoa que sabe das coisas, a quem se deve respeito, que tem tempo de sobra e que está sempre atrás de companhia para conversar. Meu critério era muito simples: se tinha muito cabelo branco, mesmo com apenas quarenta e poucos, era idoso.

Quarta-feira era o melhor dia da semana: dia de futebol! Paulistão na Bandeirantes, Carioca na Manchete, Brasileirão na Globo e (acreditem!) Copa do Brasil na TV Cultura. No domingo de manhã tinha o campeonato italiano (a “NBA” do futebol). Nas conversas que eu assuntava, não lembro de ter visto uma briga, como também não presenciei qualquer conversa indecente, como se dizia na minha infância. O tema obrigatório era futebol e todos se divertiam. Parecia que ser adulto era muito legal!

Eu prestava atenção em tudo e peguei muita informação boa nessa época. Eu e meu irmão. Nessa época, soube do lendário Sima (maior artilheiro do futebol do Piauí); ouvi falar muito bem do Tiradentes-PI; fui apresentado à Segunda Academia, com Ademir da Guia, Dudu, Luís Pereira e César Maluco; conheci a revista Placar e de todo conhecimento do jornalista piauiense Severino Filho; acompanhei Geovani e Romário no Vasco e na Seleção (são inesquecíveis jogos das olimpíadas de Seul e o bicampeonato carioca); passei a gostar (até hoje) do Napoli de Careca, Maradona e Alemão e vi que tinha uma turma que gostava do Zico, o que para mim era meio estranho, pois já o conheci com o joelho machucado e em fim de carreira. Por falar em joelho, eles falavam também de outro grande jogador, Reinaldo, que teve a carreira encurtada por causa de lesões.

Eu parava e ficava escutando, encantado com tantos detalhes sobre os times, seleções, jogos, piadas e rivalidades. Adorava aquilo!

No entanto, tinha uma coisa que me deixava muito intrigado: eu não entendia como aquele pessoal mais experiente conseguia gostar tanto do Botafogo e do Palmeiras. Meu padrinho e meus primos são os maiores palmeirenses do mundo. Contudo, para o meu curto horizonte de vida, eram times antigos e, por isso, não atraíam a minha atenção. No caso do Botafogo, a coisa piorava, pois suas cores coincidiam com as das fotos do passado. A última imagem de um título era uma de Gérson levantando a taça anos antes da Copa de 70. Enfim, esses dois eram os alvos preferidos da turma, pois não eram campeões há algum tempo (mais tempo do que eu tinha de vida).

No entanto, no local, botafoguenses e palmeirenses eram senhores confiantes e seguros de si. Avaliavam os treinadores: Leão, Tele Santana, Jair Pereira e Valdir Espinosa, entre outros. Discutiam a sério táticas e escalações. Nesse período, Palmeiras tinha bons jogadores: Gaúcho, Zetti, Elzo, Mirandinha, Jorginho (atacante, não o lateral das Copas de 90 e 94) e outros. O Botafogo também: Paulinho Criciúma, Mauro Galvão, Josimar (que fez dois golaços pelo Brasil na Copa de 86), Maurício e Mazolinha.

Eu, criança, só ouvia, ao mesmo tempo em que brincava (e, vez ou outra, pegava uma Brahma ou Antárctica para ajudar meu padrinho). Gostava da resenha, mas sinceramente não entendia a paixão por aqueles dois times, os quais que sempre morriam na praia... Palmeiras em jejum desde 1976 e o Botafogo desde 1968 (o que para mim equivalia ao ano de 1.500). Não havia dúvida: era muito melhor ser Vasco! Eu me sentia pleno e soberano com o time que escolhi.

Pouco tempo depois, ambos saíram de suas filas. Foram vitórias belíssimas. O Botafogo ganhou o Carioca de 1989, depois de 21 anos. E o Palmeiras, depois de 17 anos, venceu Paulistão em 1993, em uma das disputas mais emocionantes que eu já vi em toda a minha vida. A turma do Mercadinho tinha razão! Hoje, mais de trinta anos depois das minhas primeiras idas ao Acarape, o Verdão tem todos os títulos possíveis e é, merecidamente, o melhor time do Brasil e da América por anos seguidos. O Glorioso continua entre altos e baixos. Mais baixos do que altos, para falar a verdade.

Contudo, e essa é a minha constatação, o mundo dá muitas voltas. A vida é uma maratona e não uma corrida de cem metros.  E suas ironias são implacáveis: hoje não entra na minha cabeça o fato de alguns jovens do Século XXI não conseguirem entender a razão de haver tanta gente apaixonada pelo Vasco da Gama. Santa ignorância!

No meu caso, o futebol ainda é coisa muito séria. É a forma que eu encontrei de continuar a ser criança. Hoje tenho mais cabelos brancos do que o pessoal do Mercadinho de décadas atrás. Ainda assim, quando dou por mim, estou vendo jogos sozinho, acompanhando as redes sociais na calada da noite, passando raiva sozinho e debatendo apaixonadamente com outras crianças de cabelos brancos os detalhes de um time que está em crise há mais de vinte anos. Para ficar na mitologia lusitana, é como se nós vascaínos estivéssemos em constante vigília aguardando o retorno de Dom Sebastião, o rei cujo desaparecimento na África no Século XVI coincidiu com o declínio do império português. Mas só digo uma coisa: com ou sem sebastianismo, nossos dias de glória estão próximos!

Enfim, encontrei a resposta para a minha curiosidade infantil: hoje entendo perfeitamente o que se passava na cabeça dos grisalhos palmeirenses e botafoguenses que há mais de trinta anos frequentavam o Mercadinho Reis.

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