O Homem e a Máquina

Por Diego de Montalvão, em CRÔNICA

O Homem e a Máquina

04 de Janeiro de 2017 às 22:32

Nada é mais revigorante que uma abrasadora manhã de sábado. Desconfio que esta seja a melhor hora da semana. Eu, filho do sol e do equador, me sinto tão adaptado à típica efervescência deste lado do trópico, que uma fina melancolia me invade em dias nublados de atmosfera nebulosa.

Não que a rotina seja estafante a ponto de negá-la inadvertidamente, mas porque chegou a hora de um dos meus passatempos preferidos.

Verifico então o que há de novidade e, armado com meu Smartphone e algumas cervejas, rapidamente localizo o aplicativo Spotify e voilà: um universo onírico e desconhecido se posta diante de meus olhos.

Nasci no começo dos anos 80, portanto minha relação com a música é antiga. Por não me considerar um principiante no assunto, embora ainda me ache jovem, minha vontade é ouvir o que os novos artistas andam produzindo mundo afora.

Dou um grande gole na cerveja gelada e aprecio a efervescência de meu corpo em contato com o ambiente aquecido.  Começo pelo último álbum do Cage the Elephant e suas letras rebeldes e barulhentas. Mantenho o ritmo enérgico com os australianos do Tame Impala, admirando o psicodelismo nolstágico dos anos 70. Agora, dançante, trafego pelos hinos do Bloc Party. Nesta batida eletrônica, parto de Londres rumo à Teresina, para escutar meus vizinhos do Guardia. Diminuo o ritmo e sigo a pegada Indie do Sufjan Stevens. Neste estágio mais Low, prestes a encerrar minha jornada (dis)sonante, os paulistanos do Metá Metá me surpreendem com o toque jazz experimental à moda brasileira.

Têm sido assim as manhãs de sábado, bem como a maior parte do meu tempo livre. Desde a chegada dos streamings, uma grande quantidade de referências musicais aporta e se esvai em igual velocidade aos meus ouvidos. Se eu me sinto satisfeito? Bem, isto é relativo.

A minha lembrança mais remota do universo musical é a de uma época em que eu contabilizava cinco ou seis anos. Recordo como se fosse hoje, a viagem em família para um veraneio enquanto meu pai, mineiro, na direção cantarolava Táxi Lunar. A trilha da viagem contemplava a paisagem seca do nordeste, em uma fita cassete de 90 minutos, onde estavam gravados os nomes Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Alceu Valença.

Mais tarde, por volta dos doze anos, adentrei ao mundo do metal, justo na época de lançamento do Compact Disc. Eu era rato destas lojas e assinava zines para comprar camisetas com a caveira do Eddie. Costumava vesti-las para impressionar meus amigos roqueiros e mostrar atitude perante os colegas da escola mais ortodoxos, além de tentar um sucesso com as meninas.

Quando contava catorze anos, montei minha primeira banda cover dos Ramones e fiz meu pai viajar mais de mil quilômetros para me levar a um show dos Raimundos, que lançava o Lapadas do Povo. Aos dezesseis, conheci minha esposa e quase furei o The Colour and the Shape, do Foo Fighters, pensando tacitamente que um dia me casaria com aquela garota.

No início da vida adulta, a dificuldade em deixar a adolescência foi marcada pelo meu contato profunda com a obra dos Beatles, que mudou radicalmente minha relação com a música. A maturidade musical do quarteto de Liverpool se refletiu em meu comportamento diante do mundo de responsabilidades. Aprendi a ser mais paciente, flexível e sou grato aoWhite Album pelo alívio que me traziam os acordes menores de Lennon, McCartney e Cia.       

Justamente nesta época, começaram os churrascos regados a viola e MPB. Não era raro o sol raiar e, longe de casa, as ligações de meus pais e de minha namorada implorando para que eu retornasse. Foi quando os amigos passávamos a semana aprendendo as cifras de Chico, Los Hermanos, Belchior e outras suaves melodias para entoarmos nas reuniões dos fins-de-semana.

Não que eu me sinta velho, como deixei claro anteriormente, mas já tenho meus trinta e poucos anos. Até acho que posso acompanhar o ritmo sem atravessar o samba ou me perder no compasso, mas hoje o ritmo é mais apressado que antigamente.

No fundo, temo que no futuro, pela fugacidade das coisas, eu não tenha trilha para rememorar os momentos, minhas alegrias e minhas decepções típicas de cada fase da vida. A velocidade das informações não me permite parar, sentir e refletir sobre o singelo instante e termina por ofuscar sentimentos ou torná-los efêmeros, engolidos e obsoletos no próximo segundo.   

Para não me perder e não perder o ensejo, me apetecem as manhãs musicais de sábado, quando atravessei de volta o Parnaíba, exilado após quatro anos, amanhecendo em Teresina, com lágrimas ao ver o verde de seus olhos de menina; à hora em que me casei, à hora em que descobri o sexo do meu primeiro filho, à hora em que costumava ver meu pai, anestesiado por duas taças de vinho, percebendo-se por completo, regozijando a melodia que é ver seus meninos.  É nesta mesma hora, já ébrio, que escuto como nossos pais e tento me ater a Milton, pois meu vislumbre, mais singelo e humilde, é simplesmente pensar em tudo que eu queria ser, para acreditar que essas e outras músicas marcaram, e ainda marcarão os passos de meu caminho.

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