15 de Dezembro de 2025 às 18:13
Durante algum tempo tive como romancista preferido o francês Michel Houellebecq. Sou um leitor obsessivo: quando um autor me interessa, leio tudo o que encontro até enjoar. Fiz isso com ele. Passei por Extensão do domínio da luta, Partículas elementares, Plataforma, A possibilidade de uma ilha, O mapa e o território, Submissão, Serotonina, Aniquilar, li também Intervenções e o que mais apareceu traduzido por aqui. Esvaziei a prateleira e, de certo modo, deixei que aquele universo exausto me atravessasse também. Agora o alvo da mesma teimosia é outro: Peter Sloterdijk. Leio o filósofo alemão em sequência, livro em cima de livro, impressionado com a nitidez de certas intuições, sem que isso queira dizer adesão. No meio dessa leitura, os romances de Houellebecq voltaram como um bloco. De repente, as figuras gastas de um e as esferas rarefeitas do outro começaram a se iluminar mutuamente, mostrando o desgaste dos velhos abrigos simbólicos do Ocidente. Filosofia e literatura caminham juntas desse jeito torto: uma tropeça, a outra serve de apoio. Foi daí que nasceu a vontade de colocar os dois lado a lado.
Houellebecq pertence a uma linhagem curiosa de escritores: não se interessa por enredo no sentido clássico, nem por “grandes personagens”, mas pelo clima. O que ele quer medir é a qualidade do ar interior de uma época. E o ar que sai de seus livros é sempre o mesmo: pesado, com pouco oxigênio, saturado de desencanto. Não há brilho de frase, não há virtuosismo estilístico, não há aquela alegria de língua que ainda encontramos em alguns franceses. O que há é uma voz seca, quase burocrática, que descreve hotéis, autoestradas, repartições, supermercados, camas desfeitas, consultas médicas. A literatura, ali, é um estetoscópio encostado num corpo que respira mal. O começo de Extensão do domínio da luta é exemplar: o narrador descreve jantares corporativos, viagens de trabalho e colegas de escritório como quem preenche um relatório, sem um único gesto de elevação; em Serotonina, as idas ao supermercado e aos quartos de hotel são narradas com a mesma frieza cinzenta, como se o mundo inteiro tivesse sido reduzido a corredores de produtos e camas de uso rápido.
Os protagonistas, tão parecidos entre si, fazem parte desse projeto. Aqui não faltaimaginação; o gesto é deliberado, quase uma tese encarnada. Estamos sempre diante de um mesmo tipo humano, com pequenas variações de biografia. Um homem instruído, beneficiário das conquistas modernas, sexualmente liberado e, ao mesmo tempo, incapaz de um vínculo minimamente sólido; politicamente cético, religiosamente órfão, profissionalmente tolerável. Um sujeito que vê através dos discursos, mas não sabe o que fazer com essa lucidez. Essa figura reaparece no informático de Extensão do domínio da luta, nos dois meios-irmãos de Partículas elementares, no funcionário de turismo de Plataforma, no artista de O mapa e o território, no agrônomo de Serotonina, no professor universitário de Submissão, no assessor de ministro de Aniquilar, no comediante-clone de A possibilidade de uma ilha. Pode mudar a profissão, o cenário, a idade. O núcleo permanece.
Sloterdijk, na Crítica da razão cínica, descreve esse tipo com precisão desconfortável: alguém que sabe demais para ser ingênuo e, ao mesmo tempo, não tem força interior para romper com o jogo que despreza. O “esclarecido que continua”. Houellebecq enche seus romances dessa gente. O cinismo de seus protagonistas não é a provocação dos cínicos antigos; é o cansaço do esclarecido moderno, em que a crítica já não empurra ninguém para lado nenhum. Não são monstros, não são heróis; são pessoas que funcionam. Trabalham, viajam, fazem sexo, compram comida pronta, assistem televisão, tomam remédios. Sabem que há algo profundamente errado nessa coreografia, mas não conseguem ir muito além de tentativas de fuga que quase sempre fracassam. Florent-Claude, em Serotonina, talvez seja o caso mais cru: ele vê a revolta dos agricultores, os bloqueios de estrada, a polícia avançando, e sua reação final não é engajar-se em nada, mas voltar para o quarto de hotel, ligar a televisão em programas de culinária e aumentar a dose de Captorix. A consciência não abre caminho para o ato, apenas para mais um comprimido.
Se Sloterdijk nos lembra que vivemos sempre dentro de “esferas” – casulos simbólicos, climas de sentido que nos protegem – Houellebecq escreve o momento em que essas esferas começam a rachar. As famílias se desfazem, as igrejas se esvaziam, as ideologias perdem tração, o trabalho se torna abstrato, o sexo vira mercado. As bolhas tradicionais se desmancham e nada as substitui à altura. Suas personagens circulam por restos de casulo: apartamentos impessoais, viagensformatadas, seitas caricatas, relações desligadas, regimes políticos meio improvisados. O pano de fundo não é um apocalipse espetacular, e sim o desgaste silencioso dos ambientes ainda minimamente habitáveis para a alma. Em A possibilidade de uma ilha, essa lógica vai ao limite: os “neohumanos” vivem isolados em módulos idênticos, cercados por cercas e câmeras, lendo apenas arquivos digitais de seus antepassados; a esfera virou cápsula, e a cápsula é um túmulo climatizado.
Cada romance parece testar uma solução provisória para esse desabrigo, que ora passa por meios técnicos e químicos, ora por escapismos de mercado ou regressos institucionais. Em Plataforma, a aposta é o turismo sexual: resorts tropicais onde o Ocidente tenta comprar, em pacotes, aquilo que já não encontra em casa. O breve paraíso de Michel e Valérie na Tailândia – sexo sem culpa, sol, massagens, uma espécie de “clube Med” da libido – termina em atentado terrorista no resort; a bolha paradisíaca se desfaz em segundos, revelando-se mais frágil que o cotidiano parisiense do qual eles tentavam escapar. Em Partículas elementares, a saída passa pela biotecnologia – um projeto de “novo humano” que elimina o acaso sexual. Em A possibilidade de uma ilha, surge a clonagem, que promete continuidade sem envelhecimento e sem verdadeiro encontro. A voz dos clones que narram do futuro, satisfeitos com seu mundo asséptico, deixa escapar um tédio mineral: a humanidade foi “salva”, mas nada ali pulsa. Em Submissão, o papel de esfera é ocupado por um regime islâmico moderado que devolve hierarquias e papéis definidos. François, especialista em Huysmans, ronda a abadia de Ligugé, sente por um instante o chamado de um catolicismo que já não tem coragem de assumir; mais adiante, considera a conversão ao Islã não por convicção, mas pelo combo de estabilidade, renda, carreira e esposas jovens oferecido pelo novo regime. A fé aparece como pacote de benefícios, não como decisão interior. Em Serotonina, o antidepressivo Captorix regula o humor e apaga parte do desejo, oferecendo ao corpo um modo de seguir em frente sem desmoronar. Em Aniquilar, o que se testa, quase timidamente, é a força mínima de uma família em crise, de um casamento esvaziado, de laços que ainda resistem em torno de um pai doente.
Nenhuma dessas saídas resolve o que está por baixo. Todas funcionam como cabines de oxigênio num hospital sobrecarregado: permitem que o paciente aguente mais algum tempo, mas não mudam a doença de fundo. Aí se nota uma diferença decisiva em relação a Sloterdijk. O filósofo, por mais desconfiado que seja, ainda aposta em exercícios, práticas, disciplinas – aquilo que ele chama de “antropotécnicas” – capazes de reinventar formas de vida, de construir novas esferas de intensidade. Em obras como Tens de Mudar a Tua Vida, Sloterdijk propõe uma “verticalização” do sujeito, um treinamento que o retire da vida plana do consumo e do tédio.
Houellebecq não vai por aí. Seus personagens não treinam nada, não se dedicam a nenhuma prática continuada que possa transformá-los. Eles apenas deslizam de um dispositivo para outro: de um país a outro, de uma relação a outra, de um remédio a outro, de uma crença a outra. Essa passividade é o centro do seu desabrigo: o homem ocidental perdeu a dimensão ascética da vida. É um sujeito quase só horizontal, cuja meta é adaptar-se e aliviar o incômodo imediato. Falta-lhes musculatura para qualquer empreendimento espiritual. O máximo que conseguem é ajustar-se ao próximo casulo que apareça. É aqui que a camada religiosa, muitas vezes tratada como detalhe de cenário, ganha relevo. Em Submissão, François circula entre Huysmans, missas, abadias e mesquitas como alguém que prova roupas que não quer comprar; sente o peso do cristianismo francês, sente o apelo de uma ordem islâmica restauradora, mas recua sempre que a escolha exigiria uma conversão real. Em Partículas elementares, a seita biotecnológica mistura vocabulário espiritual e laboratório, como se a salvação pudesse ser terceirizada para um programa científico. Em vários romances, há igrejas vazias, padres cansados, seitas ridículas, gurus de laboratório: um mundo ainda cheio de sinais religiosos, mas sem fé correspondente. Nesse ponto, Houellebecq está mais próximo de Huysmans e Bernanos do que costuma ser reconhecido – só que, em vez de um conflito entre graça e recusa, vemos quase sempre uma recusa resignada, sem luta.
Há ainda o problema das mulheres em sua obra. Em geral, não são tratadas como sujeitos em pé de igualdade, mas como funções dentro do circuito de carência masculina. A jovem desejável que acende por algum tempo um homem de meia-idade; a parceira da mesma geração que envelhece e é descartada; a figura de cuidado que sustenta um pouco de calor num ambiente gelado– e depois desaparece. Em Plataforma e A possibilidade de uma ilha, isso chega a ser brutal. Em Aniquilar, aparece um pouco mais de delicadeza, mas o foco continua sendo o olhar masculino. Não é um detalhe lateral; faz parte do modo como ele recorta o real. Houellebecq escreve a partir de um ponto de vista muito marcado – europeu, masculino, branco, urbano – e raramente sai dele. Com isso, expõe a crise desse grupo social, mas também estreita o próprio campo de observação, quase sem enxergar outras figuras possíveis de sujeito ou de resistência. O “Ocidente” que ele descreve tem esse rosto fixo. O resto entra como cenário.
Contudo, a estreiteza do olhar do autor não é apenas uma limitação, mas uma manobra de sua tese. Ao centrar a narrativa no homem ocidental, instruído, herdeiro da hiper-liberdade moderna, Houellebecq faz o retrato de uma elite que já não sabe para que serve a própria vida. O que é “excluído” não é a presença do Outro, mas sua interioridade como sujeito complexo. O Islã em Submissão, as mulheres em Plataforma, e o Terceiro Mundo turístico são usados como agentes de substituição ou paliativos funcionais que resolvem o desespero do protagonista, seja oferecendo uma estrutura de poder (Submissão) ou uma satisfação física imediata (Plataforma). O romance, portanto, torna-se a crônica da perda de relevância de um grupo que, sentindo-se esgotado, só consegue enxergar o resto do mundo como ameaça, mercadoria ou uma forma de ordem que o alivie de sua própria liberdade.
Em Intervenções, as coisas ficam ainda mais claras. Sem o anteparo da ficção, o autor fala diretamente sobre Europa, Islã, turismo, União Europeia, literatura, economia. Ali se vê que os romances não são apenas máquinas de escândalo ou sátira; são também a continuação, em prosa, de convicções bastante firmes sobre o fracasso dos projetos modernos. A desconfiança em relação à democracia liberal, à retórica dos direitos humanos, à globalização cultural, à liberação sexual – tudo isso, que nos romances aparece encarnado em personagens e situações, nos ensaios surge quase sem filtro. Ler esses textos depois dos romances é como ver o negativo de um filme: mudam as sombras, o desenho permanece.
Discutir se Houellebecq enxerga bem o tempo em que vive é quase perda de tempo: o diagnóstico está lá, à vista. O incômodo nasce em outro lugar, na sensação de que ele se instala dentro desse diagnóstico e passa a reverberar, em tom literário, o mesmo vazio que descreve. Há um gosto evidente em levar tudo ao grau máximo de desencanto, em mostrar sempre o pior ângulo, em tratar qualquer tentativa de esperança como ingenuidade ou autoengano. Em certos momentos, a prosa roça uma complacência com o fracasso, como se dissesse ao leitor: “eu te avisei”. É aqui que a crítica mais severa se impõe: se a literatura, em seu estilo seco e burocrático, apenas repete o esgotamento do mundo, ela corre o risco de uma auto-anulação estética, tornando-se tão cansativa e inerte quanto a horizontalidade que denuncia. É aí que o leitor precisa endurecer um pouco: lucidez não basta; um escritor também responde pelo tipo de mundo que escolhe reforçar ou negar.
Mesmo assim, há passagens que escapam desse circuito fechado. Em Aniquilar, por exemplo, as cenas de hospital, a proximidade com a morte, a forma como certos vínculos se recompõem em torno de um pai à beira do fim, tudo isso é tratado com uma gravidade diferente, menos inclinada ao sarcasmo. Em Submissão, por baixo do jogo político e da provocação religiosa, há momentos em que se percebe o cansaço de alguém que já não sabe como viver num país que perdeu o centro. Em Serotonina, a situação dos agricultores, os suicídios, a revolta sufocada em silêncio, são mostrados com uma espécie de respeito triste que raramente se vê nos primeiros livros. Nessas frestas, o escritor sai um pouco do papel de anatomista cínico e se aproxima de algo mais raro: olhar o esfacelamento sem transformá-lo em espetáculo.
Lida ao lado de Sloterdijk, a obra de Houellebecq deixa ver o desenho de fundo: não se trata só de provocar, nem de fazer sociologia em forma de trama. O que aparece, com insistência, é um mundo em que quase não restam lugares para abrigar fé, desejo e medo e, em vez de recuperar ou inventar práticas de auto-superação, se acomoda em paliativos técnicos, químicos, turísticos, religiosos, institucionais. Sloterdijk oferece o vocabulário da arquitetura das esferas e o chamado ao esforço vertical; Houellebecq registra o cansaço num prédio ainda habitado, onde as paredes já não seguram o vento. Um leitor pode ver nisso grande literatura; outro pode ver apenas o documento extremo da nossa exaustão. Em qualquer dos casos, é difícil sair ileso. Depois de percorrer quasetudo dos dois, o que me parece certo é que Houellebecq, com todas as limitações, fixou uma figura que não vai desaparecer tão cedo: esse homem ocidental esgotado, repetido de livro em livro, que já não acredita em nada com firmeza, mas também não suporta ficar sem algum tipo de amparo. É um retrato desagradável, às vezes injusto, muitas vezes estreito. Talvez por isso mesmo seja tão difícil esquecê-lo.
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