
04 de Agosto de 2020 às 21:11
Cenas 7, 8 e 9
(Lucas Villa, 2001)
VII
Manhã de um novo dia. Entra no quarto do porão a criada, trazendo a bandeja com o café da manhã.
O Misantropo está sentado em um dos vértices do quarto, encolhido e com a cabeça apoiada nos joelhos.
Criada – Cá está teu desjejum. Que fazes aí encolhido qual coruja?
Misantropo – Crio e recrio o mundo. Toda a minha criação, porém, causa-me náusea. Por isso evito-a.
Criada – Estás louco, ou melhor, sempre o foste. Apenas torna-te cada dia mais incompreensível.
Misantropo – E tu cada dia mais ousada. Como é audaciosa a ignorância! Acaso assim te criei? O certo é que não és a minha imagem. Não vi em todo o mundo um só que a fosse. Findei por afastar-me deste mundo para recriá-lo.
Criada – Poupa-me de tuas palavras sem nexo. Hoje te quererá ver tua irmã.
Misantropo – Não, minhas palavras não são, realmente, para tuas antenas. Diga a minha irmã que por ela aguardarei, mas que venha antes da lua. É-me justo estar sozinho quando a lua é clara e se derrama através de minha pequena janela. Sabes, tola criada, nada me prende a este mundo, a não ser as janelas e as possibilidades que elas encerram. (pausa) Acaso confundem-me as falas? Creio repetir ditos de uma outra cena...
A criada deixa o quarto, com ar de desdém. Fecha-se a porta e o Misantropo sorri discretamente com o canto da boca.
VIII
Horas mais tarde, antes do anoitecer, vem a irmã visitar o Misantropo. Tem olheiras e está pálida.
Misantropo – Ó, minha irmã, que te causa estes sulcos nos olhos? Nunca há motivos nesta vida para empalidecer. É-te a vida alguma espécie de tortura? Pois é preciso ser sádico para viver bem!
Irmã – Fico feliz que tenhas recebido o jovem poeta, tua atitude acendeu em meu coração uma centelha de esperança.
Misantropo – Esperança? Toda esperança é tola. Nada há que se possa esperar quando nós mesmos somos a verdadeira espera. Só o que nos resta é ser!
Silêncio. A irmã baixa os olhos.
Irmã – Ah, meu irmão, temo tanto por tua sorte! Busquei maneiras mil de falar-te sobre o que te agora falarei. Busquei maneiras mil e acabei por descobrir que se não deve buscar palavras ou maneiras, o melhor é não se camuflar e deixar-se encontrar por elas. Precisas deixar este quarto ou meu marido cuidará de internar-te em um sanatório. Sinto, mas nada mais há que eu possa fazer.
Chora a irmã e tenta abraçar o Misantropo. Ele se esquiva.
Misantropo – Malditos sejam os que desdenham da minha lua! Malditos sejam os que me renegam! Não veem que só a mim é permitido renegar? Vai-te embora daqui e não volta! Já desce a noite e quero estar só.
IX
Enquanto isso, sozinho em um bosque, monologa o jovem poeta.
Poeta – Pudesse eu ser uma árvore como estas tantas que me cercam! Nada têm as árvores a questionar... Quantas perguntas me mordiscam o espírito neste momento!
Tenho sido, até hoje, uma árvore? Por que me nunca haviam surgido na alma estes questionamentos? E por que não amedrontam, eles, também as almas dos que me cercam? Era eu uma árvore cercada de árvores? E agora, o que sou? O que me transformou em qualquer cousa diferente duma árvore? Acaso foi o Misantropo, naquele porão?
Nas páginas até então escritas de meu universo parece não haver respostas às indagações que me atormentam. Por que não há escrito em qualquer lugar o que sou, onde estou, quando vivo? Uma árvore não tem livre-arbítrio. A ela não é permitido andar, sorrir, falar... algo há que parece controlá-la como um fantoche, algo que a move por dentro como por fora move seus galhos o vento.
Mas algo há também que me parece mover por fora e por dentro! Acaso tem o homem livre-arbítrio? Não posso voar, respirar sob as águas, habitar o interior de um fumegante vulcão. Não, não sou livre para viver como quiser! Ser livre é ter inúmeras opções e escolher apenas as que lhe convém. Não é livre aquele que apenas tem opções impostas e opções proibidas. Liberdade é proibir a si mesmo quando se lhe convém.
Não são, pois, livres os homens. Não são eles que proíbem a si mesmos.
Como me enoja aquele que a todos proíbe! Quem proíbe despreza.
“É preciso desprezar para ser Deus”, disse-me o sábio Misantropo. Mas afinal, o que é aquele estranho homem? Ele a tudo despreza e de tudo proíbe-se. Sim, ele não é árvore e nem homem, porque tem inúmeras opções e proíbe-se a si mesmo de executá-las. É assim que lhe convém viver. Eterna contradição das cousas! O que parece mais preso é o que vive mais livre...
Ele proíbe e despreza.
O jovem poeta senta-se sob uma grande árvore e principia a escrever um soneto. Surge, veloz, do bosque, uma sombra e para a uma média distância do poeta. Ele a percebe com susto.
Poeta – Quem és? Que fazes aí a observar-me?
Sombra – Fizeste a pergunta errada. É mister que se aprenda a perguntar.
A sombra avança em direção ao poeta e ele, amedrontado, tenta correr para longe. Mais rápido é o espectro, que logo o atinge e salta sobre ele. A sombra, ao chão e sobre o poeta, toma-lhe o papel com o primeiro quarteto do soneto a pouco iniciado e bate-lhe com força no estomago. Levanta-se.
Sombra – Antes de perguntar “quem és” é preciso perguntar “quem sou”, principalmente quando te defrontares com o desconhecido. Eu sou o desconhecido e em mim repousam muitas das respostas que tu procuras. No entanto, ainda apanhas de minha sombra.
Dizendo isso a Sombra some velozmente em meio às árvores do bosque. O Poeta geme de dor e desmaia.
(Continua na próxima terça-feira...)
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