Os pés descalços de Ava Gardner

Por Raul Lopes, em OPINIÃO

Os pés descalços de Ava Gardner

12 de Maio de 2021 às 12:47

Quando leio os contos do J.L. Rocha do Nascimento tenho a impressão que eles são produzidos sem esforço, que o desgaste é mínimo e que a sensação de leveza deve prevalecer no autor ao fim de sua missão. Digo isso pela tamanha valorização descritiva, que somente com o exercício da leveza se consegue exprimir, e aqui não falo de detalhar por detalhar, me refiro, por exemplo, a visão de uma borboleta descrita em Diário de bordo: “negra como o asfalto, exceto pelos pontinhos avermelhados que julguei serem os olhos...” ou no trecho de Bola ao cesto: “Uma gota de suor aumentava de tamanho na medida em que descia lentamente pelas têmporas”. Essa gota, além de trazer ao leitor a aflição presente na cena, possui um forte apelo cinematográfico, onde somos arremessados a um Plano Detalhe – aquele em que o foco é tão preciso ao ponto e percebermos o engordar da gota no centro da tela.

 

O caleidoscópio reprodutor de imagens coloridas do autor vai além da expressão na escrita cinematográfica (percebe-se que o cinema é outra paixão do autor), o dia a dia e as provocações do Bureau de julgador se exprimem em linhas como “e então o escravo da lei, Ângelo se transforma no dono da lei e absolve Cláudio” – no conto O meritíssimo, refletindo aqui o sensível tema do ativismo judicial – o alcance da mão do juiz. Em O depoimento pulsam as mazelas sociais e a sensação de total desamparo da personagem “devia ter uma lei pro pobre, seu doutor” – e é com esta frase inicial do conto que as cortinas se abrem e os atores entram em cena.

 

Assumindo o risco de cometer um erro, arrisco em falar que a música faz parte fortemente das inspirações de J.L Rocha do Nascimento. Na leitura de Breviário foi inevitável não lembrar de “Não quero mais amar a ninguém” do saudoso Angenor de Oliveira (O Cartola) - principalmente no trecho final “não fui feliz porque o destino não quis” - , mas pouco me interessa o acerto ou confirmação da inspiração, no mínimo, aproveito a feliz coincidência.

 

Ainda no palco musical, e agora de forma mais clara, em Na rede o autor faz referência a Michele da dupla Lennon/McCartney, já em En Aranjuez con mi amor, que além de falar delicadamente sobre influências cinematográficas como  no trecho: “Nada que lhe lembrasse as sessões homéricas de vinhos tintos, uvas pretas e morangos silvestres” penso que esses morangos silvestres referem-se ao titulo homônimo do clássico filme do cineasta sueco Ingmar Bergman. Ainda temos En Aranjuez con mi amor, um comparativo das belíssimas versões de Miles Davis e de Nana Mouskouri para o Concierto de Aranjuez.

 

A veia religiosa está representada na obra pelos tementes a Deus, por aqueles que possuem um profundo respeito e obediência ao ponto de aceitar e reconhecer os castigos divinos. Em Na sala de jantar quando se lê “fui castigado, não tem outra explicação” ou em Célula mater no trecho “Temente a Deus, por suas obras, arrependeu-se do gesto” ou em “A mãe costumava dizer que carrega um cruz ...” aqui se faz presente a imposição dos dogmas,  presença do castigo divino, o julgamento em vida, a pena, a punição... A religião e seus dogmas fazem parte do universo de J.L nos dando a impressão de serem reminiscências que apesar de distantes, ainda pulsam nas veias do autor (relatos nostálgicos também presentes em Deus salve Antônio Leiteiro).

 

No aspecto da influencia literária - aqui não pretendo identificar a receita ou decifrar a fórmula do autor, de quantas pitadas de Rubens Fonseca ou do bruxo do Cosme Velho o autor exprime sua escrita - mas identifico alguns trechos de deliberada influência. A literatura argentina é sentida em Aguilhão rimboudiano, não pelo título direcionado ao francês Arthur Rimbaud, pelo delicado “sonhar com tigres, punhais e labirintos borgianos”. Em A casa confinada o próprio autor se questiona “casa confinada ou casa tomada ?” em possível referência ao conto A casa tomada de Julio Cortázar quando se é expulso do seu próprio habitat por não suportar o peso das memórias.

 

Seria cômico se não fosse trágico o relato de A Entrevista, “e quanto ao povo, e essas pessoas mortas e as que continuarão a morrer, não vai dizer nada? Que polvo ? Prefiro camarão.” Aqui não vejo partidarismo ou qualquer ideologia, é apenas um relato dos bezerros que sorvem o precioso leite dos recursos públicos. É um relato de uma conduta alheia a moral e a ética que também faz parte daquele conto que fala de um agiota, de um pedófilo ou de um ladrão de galinha ou de qualquer outro contraventor. No trecho “A história foi apagada e os livros queimados, não se lembra?” são exclusivamente relatos históricos desprovidos de qualquer posicionamento político, aliás tema afastado de todo objeto da obra. Mas confesso que o conto me fez lembrar do “Escândalo da parabólica” que foi resultado de uma transmissão televisiva vazada em setembro de 1994, de uma conversa entre o embaixador Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda do Brasil. É como disse, são relatos históricos.

 

Na por mim classificada segunda parte do livro, digo isso pois os contos são apresentados de forma fragmentada num formato distinto da primeira metade, me deparo com Os oito pecados capitais. Li em algum lugar que o homem ideal é aquele que possui uma pitada de cada pecado capital, no caso do relato de J.L sobre cada um dos pecados, a intenção não é demonstrar sutilmente a pitada de um ou outro pecado, mas sim carregar na tinta em descrever a intenção de machucar a si ou o próximo.

 

O título indica que são oito os pecados capitais, curioso fiquei para identificar o novo pecado e, ao lista-los, percebi que era mentira. Apesar de não possuírem origem cristã, os pecados capitais foram amplamente difundidos pela igreja como forma de apresentar atitudes que afastariam o ser humano de Deus. A mentira não é um pecado capital, talvez por ser a única não verdadeira, a única que se simula. Penso que todos os outros sete pecados só admitem a forma verdadeira, a forma deliberada e pura de manifestação. Só se pratica a ira, a inveja, a preguiça, a avareza, a luxúria, a soberba e a gula se forem verdadeiramente deliberadas e expostas, não se simula. Já na mentira, não se vê tanta certeza como presente no texto: “E o fez assim tão naturalmente que nem sentiu que era verdade”, o conto ganha muito valor quando o autor se arrisca em classificar o oitavo pecado e, principalmente, pela forma que é descrito.

 

Outras interferências cinematográficas estão em O trielo, aqui declaradamente dedicado ao diretor italiano do gênero spaghetti western ou faroeste espaguete, Sérgio Leone. Em O menino e o homem diante do espelho, o autor narra ao mesmo tempo um roteiro de vida e de filme, neste, o autor além de escrever, dirige – “Ele sabe que agora os papeis estão invertidos” – trecho de O menino e o homem diante do espelho. Inclui-se ainda a narrativa de A morte do andarilho que é narrado na forma de planos e tomadas onde se constrói uma história sobre João e Maria.

 

Assim com o Livro de areia de J.L. Borges, Os pés descalços de Ava Gardner tem seu título retirado do ultimo conto da coletânea. No caso de J.L. Rocha do Nascimento, se percebe no último conto uma pitada de suas influências em cada parágrafo. Vai do cinema com a participação das estrelas Ava Gardner, Lauren Bacall e Humphrey Bogart, dos filmes como Casablanca e A condessa descalça à literatura, com trechos de Machado de Assis, Joseph Adson e (J.L.) Borges. Os pés descalços de Ava Gardner é um passeio que vai do estudo anatômico do tarso, metatarso e falanges aos minuciosos detalhes de contorno e textura dos pés. Pode apostar que a coisa não é tão simples como parece, feliz escolha para o fechamento do livro.

 

A obra Os pés descalços de Ava Gardner é uma gangorra, em parte se verifica uma escrita impregnada de memórias e reminiscências em outra um universo urbano com seus personagens curiosos. O efeito surpresa, a coesão e a intensidade saltam aos olhos nos contos urbanos, já os contos de memórias (por assim dizer) são mais sensíveis, mais longos e com a sensação que essa via estaria livre para uma versão do J.L. romancista.

 

Não é o primeiro J.L. que leio, acompanho as publicações no blog Confraria Tarântula, no livro Um clarão dentro da noite e da obra coletiva Dei pra mal dizer, em todos eles existe um escritor preocupado com o peso da palavra e com prazer em contar história. Os pés descalços de Ava Gardner é de se ler em poucos horas e de se lembrar por vários dias.

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