“Rastros” ou “Sobre os ossos dos mortos” (Polônia, 2017)

Por Leandro Lages, em CINEMA

“Rastros” ou “Sobre os ossos dos mortos” (Polônia, 2017)

30 de Junho de 2020 às 03:28

“Ora (direis) ouvir estrelas!”  

Olavo Bilac

 

O poema “Via láctea”, de Olavo Bilac, fala de um tresloucado que diz conversar com as estrelas. Indagado a respeito de como consegue tal proeza, ele arremata explicando que “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender as estrelas”.

Lembrei do poema após ler “Sobre os ossos dos mortos”, da escritora polonesa Olga Tokarczuk, prêmio nobel de literatura, obra que deu origem ao filme polonês “Rastros”.

O livro centra o enredo em Janina Dushenko, uma engenheira de meia idade que abandonou a sua profissão para se isolar em uma gélida região montanhosa onde leciona aulas de inglês para crianças.

Ativista ambiental fervorosa, estudiosa de astrologia e apreciadora de Willian Blake (o título do livro vem de um poema do escritor inglês), Janina evita comer carne, tem poucos amigos e analisa as pessoas pelos mapas astrais que elabora.

Acredita que a partir de dados como a data e a hora exata do nascimento é possível compreender traços profundos da personalidade humana e até mesmo detalhes sobre quando e como morrerão.

Quando alguns moradores da região começam a morrer misteriosamente, ela tenta auxiliar a polícia alertando que as vítimas eram caçadores impiedosos e que as suas mortes estariam associadas a uma vingança da natureza, pois nas cenas dos crimes havia vestígios da presença de animais, como rastros, sangue, pelagem, e até mesmo insetos e ossos asfixiando algumas das vítimas.

E para reforçar o seu argumento exibe o mapa astral dos caçadores demonstrando que as mortes estavam previstas no documento desde o nascimento das vítimas e eram associadas a animais.

De início ninguém leva a sério, pois ela sempre fora considerada uma velha maluca que “conversava” com os astros e que periodicamente denunciava caçadores pelo “assassinato” de alguns animais, inclusive besouros que viviam na casca de árvores.

Mas à medida que os detalhes astrológicos apresentados se encaixam nas mortes que aconteciam, a polícia passa até mesmo a suspeitar que ela esteja envolvida nos crimes!

E assim vai-se devorando a obra, com um enredo que mescla mistério e trama policial, permeado de ambientalismo e feminismo, além de pitadas de astrologia e poemas de William Blake.

Em vários momentos durante a leitura nos questionamos se de fato a natureza é capaz de reagir contra os seus agressores, ainda mais nos tempos atuais de pandemia de coronavirus!

Também comportam reflexões sobre as tradições populares culturais, como a caça esportiva descrita no livro, em confronto com o direito dos animais. Como não lembrar das vaquejadas no nordeste brasileiro, das rinhas e do formato original das touradas na Espanha?

Outro ponto forte do livro corresponde às reflexões da protagonista sobre as suas convicções, algo pouco explorado no filme. Para ela, que levava uma austera vida bucólica , “uma mochila e um laptop é o que deveria bastar a qualquer pessoa”.

Em um outro momento, refletindo sobre estilos de vida, ela diz ter muita vontade de “saber como os morcegos veem o mundo (...) essencialmente tinha muito em comum com eles, também enxergava o mundo em outras frequências, às avessas”.

Até a abordagem da astrologia pode despertar o interesse dos mais céticos. No trecho em que ela diz “o movimento dos planetas é hipnótico, belo, não há como pará-lo ou acelerá-lo”, a fala da astróloga me fez lembrar o astrônomo Carl Sagan1 ao se referir à existência de Deus: “O fato de que as mesmas leis da física se apliquem a todos os lugares do universo é extraordinário. Certamente representa um poder maior do que qualquer um de nós. Representa uma inesperada regularidade do universo”. Um inusitado diálogo entre a astrologia e a astronomia!

O filme rende uma boa homenagem ao livro por dois motivos: (1) as belas paisagens das gélidas montanhas e das florestas onde o enredo se passa e (2) a atuação da atriz Agnieszka Mandat-Grabka, que incorpora com magnetismo a protagonista do livro.

Para facilitar a adaptação cinematográfica, o filme não se passa na mesma ordem cronológica do livro, segue uma linearidade diferente, além de inserir alguns fatos que não acontecem no roteiro original, mas nada que comprometa o espírito da obra.

Uma completa imersão no enredo envolve primeiro ler a obra e depois assistir ao filme. Após a experiência, mesmo quem não acredita em astrologia levará mais a sério os mapas astrais, ainda mais se, assim como eu, acreditar que Olavo Bilac falou a verdade sobre a possibilidade de conversar com as estrelas...

(1) SAGAN, Carl. Variedades da experiência científica: uma visão pessoal da busca por Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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