Relatos Selvagens (Argentina, 2014)

Por Raul Lopes, em CINEMA

Relatos Selvagens (Argentina, 2014)

26 de Novembro de 2014 às 13:06

Esse post é dedicado a cidade de São Paulo

Olé ! Mais um baile do cinema argentino. Não que seja uma competição, mas sim uma esperança em ver o cinema brasileiro fugir da praga do “politicamente correto”. Sob a forma de antologia, o filme relata seis histórias em que os personagens não se relacionam uns com os outros, mas são unidos por um único fio condutor: a ira. Em todas as narrativas os personagens são provocados até que qualquer um perceba o limite tênue entre a civilidade e a barbárie – o silencio que precede o esporro. As provocações surgem das mais variadas situações, seja decorrente de frustrações, do passado ou do convívio com o “outro”.

O que você faria se pudesse reunir em um só lugar todos aqueles que, de uma maneira ou outra, lhe fizeram algum mal? O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre em sua peça teatral Entre quatro paredes (Huis clos no original francês) <http://www.casadeteatropoa.com.br/textos/mural/Entre_Quatro_Paredes_-_Jean_Pa.pdf > trata de três personagens, Garcin, Inês e Estelle,  que morreram e foram ao inferno, mas nesse inferno não havia diabo ou demônios, e sim um quarto fechado onde foram condenados a conviver uns com os outros numa espécie de confinamento.

É dessa peça que se extraiu a célebre frase dita pelo personagem Garcin: “o inferno são os outros” – observe que em sua construção o plural (são) põe em destaque “os outros” e não “o inferno” - isso pode soar com uma impossibilidade do convívio social, uma visão pessimista onde no mundo ideal não haveria “o outro” para provocar, para contrariar, para odiar... Para Sartre “Os Outros” são os responsáveis por revelar de nós a nós mesmos e por isso a convivência pode atingir níveis de intolerância insuportáveis dando margem a atos de selvageria.

Além do convívio, o que dizer da difusa forma de provocação representada pela corrupção e pela burocracia? O comum é suporta-las. A batalha contra a corrupção, que por incrível que pareça, possui a burocracia como instrumento de combate, trata-se de uma briga desleal e desproporcional, uma espécie de Davi contra Golias, ou até mesmo de Dom Quixote contra os moinhos. A disparidade é tamanha que qualquer atitude de revolta é entendida como um exagero, algo sem fundamento, daquelas atitudes que não chegam a canto algum. Questionar ou cruzar os braços como forma de protesto, transforma qualquer cidadão em uma criatura desprovida de bom senso social, despida da eutimia de Sêneca.

Esse categoria de “bom senso social” se assemelha a comodismo, a  conformismo e a resignação. David Henry Thoreau em sua obra “A Desobediência Civil” se revoltou e foi preso pois não concordava com o pagamento dos altos impostos cobrados pelo governo americano, o que lhe fez ser visto como anarquista.

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Thoreau defendia que: "O melhor governo é o que governa menos - aceito entusiasticamente esta divisa e gostaria de vê-la posta em prática de modo mais rápido e sistemático. Uma vez alcançada, ela finalmente equivale a esta outra, em que também acredito: O melhor governo é o que absolutamente não governa", e quando os homens estiverem preparados para ele, será o tipo de governo que terão. Essa ideologia política liberal acreditava que os homens deveriam ser livres para decidir sobre o seu próprio destino e que, portanto, as funções do estado deveriam ser reduzidas ao mínimo necessário.

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Para que se revoltar?? Só quero viver minha vida, cuidar da minha família e poder viajar com meus netos – e claro, ser estuprado diariamente por aqueles que querem mais do que isso. O saco da ganancia não tem fundo. Para os gananciosos, os acomodados e passivos são os principais alvos, deem a eles o mínimo e peça tudo que quiser, certamente serão agraciados. Os urubus estão chegando antes do animal morrer.

Além das provocações causadas pela corrupção e falta de credibilidade nas instituições, somos atingidos frontalmente e diariamente pela rapidez das informações e pela pressão/opressão em saber de tudo que acontece. Essa avalanche criou o fenômeno da snac culture ou consumo de entretenimento instantâneo, uma “cultura” em que não se sabe nada de forma profunda e sim curiosidades sobre temas do cotidiano, uma espécie de geração do “você sabia que ...” ou “cultura miojo” e isso tudo, certamente, acaba por potencializar a ansiedade e o stress.

A avidez pelo consumo do novo faz nascer um hábito de se criar e esquecer escândalos ou atitudes selvagens na mesma velocidade em que se consome informações banais e isso implica na chamada “minimização do absurdo”. Ninguém se escandaliza mais por nada, atos de selvageria passaram a ser corriqueiros e banalizados e em muitas situações tratados com humor. Como questiona o personagem de Ricardo Darín:  Onde está a violência? Só estou descrevendo a realidade.

A propagação dessa sociedade virtual fez com que o ambiente de trabalho, a conversa com amigos e até mesmo as brigas familiares fossem propositadamente escancaradas e resolvidas diante de uma plateia ávida por um desfecho cruel que rapidamente será esquecida. Culpado “eu” ? Nunca. A culpa é sempre “dele”. Ou, pior, de “vocês”. Relatos Selvagens é isso.

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