Samsara (Índia, 2001)

Por Márcio Barros, em CINEMA

Samsara (Índia, 2001)

10 de Dezembro de 2014 às 13:10

Como fazer com que uma gota de água nunca seque? Essa é a pergunta que o personagem Tashi lê numa pedra solta em um muro, no início do filme Samsara, e que permeia toda a narrativa. A palavra Samsara vem do sânscrito e significa o eterno ciclo de nascimentos, mortes e renascimentos a que os seres vivos estão condenados. Segundo o budismo, a única maneira de se escapar desse fluxo contínuo seria através da iluminação – O Nirvana.

Tashi é um monge budista, e, como tal, busca a iluminação - único desejo que deve ser perseguido por um monge ao longo da vida.  À procura do nirvana, ele passa três anos ininterruptos, isolado, nas montanhas do Himalaia, meditando. Ao final desse tempo, o monge, bem debilitado, é resgatado por seus pares e levado de volta ao mosteiro, onde é homenageado e admirado por sua proeza. Todos o vêem como exemplo de determinação e serenidade a ser seguido. Todos, menos ele próprio. Estranhamente, depois de todo esse tempo meditando, Tashi se acha mais inquieto e confuso do que nunca. É a incômoda sensação de incompletude tão íntima a todos nós, não iluminados.

Com o passar do tempo, uma enxurrada de sentimentos contraditórios toma conta do monge. Em determinado momento ele se questiona sobre sua verdadeira vocação e sobre a própria doutrina criada por Sidarta Gautama, o Buda. Sidarta teve uma vida mundana (até os 29 anos) para só então optar pelo ascetismo. Ele, Tashi, não. Desde os cinco anos só conhece aquela vida de privações. Como ele poderia abdicar de algo que não conhece? Como saber se a iluminação alcançada por Buda, também não foi resultado direto de suas experiências com a vida mundana?

Munido com esses questionamentos, Tashi comunica a seu mestre, Apo, que está deixando a vida monástica, e, como um São Francisco de Assis às avessas segue sozinho, não renunciando o mundo, mas, ao contrário, entregando-se de corpo e alma a ele (a belíssima cena em que abandona todas as suas vestes e banha-se no rio é de um simbolismo formidável). 

Em sua nova jornada, Tashi enfia o “pé na jaca”, como se diz. Começa assumindo um romance com Pema, camponesa comprometida, a quem já tinha desejado ainda no monastério. Eles se casam, constituem família e vivem uma modesta vida campesina. O ex-monge pela primeira vez tem experiências que o fazem se sentir vivo.  De repente sexo, raiva, cobiça e paixão começam a fazer algum sentido para ele.

Mas, não demora tanto até aquela velha angústia bater à porta da alma novamente. Um implacável e familiar sentimento de vazio. O camponês, depois de anos de “vida mundana”, parece provar na própria carne a máxima de Santo Agostinho: O que é o desejo, senão o apetite de possuir o que ainda nos falta?  E parecia que ainda lhe faltava muito.

Quando Apo, seu antigo Mestre, encontra-se à beira da morte, escreve uma carta a Tashi questionando-o:

“então, finalmente, você deve estar apto a responder o que é mais importante: Satisfazer milhares de desejos ou conquistar apenas um?”

Tashi não tinha o que responder. E, se essa pergunta fosse direcionada a nós mesmos, provavelmente também não saberíamos. Depois de séculos de repressão, quando finalmente podemos gozar da liberdade sexual e dos paraísos artificiais da recente era do hedonismo, encontramo-nos tão vazios e confusos como o monge "fanfarrão".

Samsara, apesar de retratar o tortuoso caminho de um budista em busca da iluminação, não é um filme religioso. É uma sóbria reflexão sobre o desejo como força motriz e destruidora ao mesmo tempo. O desejo, provavelmente, é o que nos mantém vivos. No entanto, em tempos de busca pelo prazer como ideal máximo de vida, nada mais pertinente do que o questionamento do mestre Apo. Afinal, os milhares de desejos a que somos encorajados a realizar a todo instante não estão nos levando a satisfazer o mais importante deles: paz de espírito.

Mas, e quanto à pergunta do início: Como fazer com que uma gota de água nunca seque? A resposta poderá estar ao final do enigmático SAMSARA.

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