16 de Dezembro de 2025 às 12:57
“Gosto não se discute” é uma daquelas frases que parecem educação, mas funcionam como tapa de luva. Ela não resolve conflito nenhum; manda cada um de volta para o seu canto. Não é respeito: é silêncio obrigatório. Enquanto circula com cara de bons modos, o que há de mais bruto no gosto — classe, poder, mercado, ressentimento — segue trabalhando em silêncio.
Pierre Bourdieu não tinha paciência para essa fantasia de intimidade. Em “A Distinção”, ele desmonta a ideia de que gosto é um núcleo secreto da pessoa, quase uma alma estética. Para ele, o juízo de gosto é sobretudo um instrumento de distinção e exclusão. Quando alguém diz “isso é fino” e “isso é brega”, não está apenas descrevendo um objeto: está colocando gente em degraus diferentes. “Fino” é o que o grupo dominante aprendeu a consumir, nomear e legitimar desde cedo. “Brega” é o rótulo que afasta os outros.
A desigualdade não passa só por acesso a livros, concertos, viagens. Ela se grava no corpo. O estômago que recusa certa comida porque “pesa”, o ouvido que sente vergonha de um ritmo, o olho que não aguenta um tipo de cor ou excesso: isso é habitus, não “sensibilidade natural”. A tal “delicadeza de paladar” muitas vezes é apenas o resultado de anos de treino num certo mundo — e depois esse treino é transformado em critério universal. E isso não se fabrica só na cabeça: passa por escola, família, mídia e pelo próprio campo cultural, que ensinam o que merece atenção, quais nomes importam e como se fala do que se gosta.
Não me detenho na análise formal; interessa-me aqui o uso social do gosto e como ele organiza fronteiras e pertencimentos. Isso não nega que forma e técnica medi em prazer; apenas não é esse o meu foco aqui.
É aí que “gosto não se discute” encaixa sem atrito. Se o gosto é declarado intocável, a hierarquia que ele encena também fica fora de alcance. A classe dominante não precisa anunciar “somos melhores”; basta repetir “temos bom gosto”. Quem não domina o código entende o recado. Passa a acreditar que o defeito é seu: “não entendo”, “sou simples”, “isso não é para mim”. A frase, dita com ar de tolerância, funciona como freio na conversa e no incômodo.
Theodor W. Adorno, em “Dialética do Esclarecimento”, olha para o mesmo terreno por outro ângulo. Ele descreve a indústria cultural como fábrica de gosto dócil. Adorno pensou isso olhando para o rádio comercial e certos padrões de entretenimento do seu tempo; eu só estendo o diagnóstico para o regime atual das plataformas. O circuito não apenas detecta preferências: ele as modela, afunilando o que conta como desejável. Filmes, séries, músicas saem da linha de montagem com pequenas diferenças de superfície e a mesma engrenagem por baixo.
A sensação de escolha encobre o fato de que o cardápio já vem recortado por outros. A vitrine muda; o modo de operar — repetição e recompensa — permanece. Adorno chama isso de pseudo-individualização: o sentimento de ter um gosto próprio diante de mercadorias quase idênticas. Não é paranoia teórica; é modo de produção.
Os algoritmos só tornaram o processo mais pontual. Medem tempo de atenção, pulo de faixa, cliques, reescutas, registram o que você abandona no meio e devolvem isso como previsão “personalizada”. Preferências são quantificadas e devolvidas ao usuário como curadoria calculada. Mesmo quando o sistema varia o cardápio, é diversidade sob métrica: novidade suficiente para adiar o tédio, sem romper o hábito. A diferença é que o algoritmo não precisa de coerção ou imposição vertical; ele explora a psicologia da autoconfirmação. Aquilo que alguém proclama com orgulho como “meu gosto” — a playlist que parece feita sob medida — é, em boa parte, resultado desse treino fino e desse reforço constante da bolha que simula a singularidade estética. O valor estético se desloca para o valor de engajamento.
Ponhamos isso em cena.
De um lado, um show de sertanejo universitário num estádio cheio. Do outro, um concerto de música erudita com orquestra e solista estrangeiro. Muita gente da classe média alta sente náusea física diante do primeiro: “lixo”, “música de gente sem formação”. No segundo, respira fundo e se ajeita na cadeira: “isso é cultura”. Quando alguém aponta a diferença de tratamento, vem a frase salvadora: “é só questão de gosto”.
Trata-se de um tipo ideal, claro: há misturas, exceções, gente deslocada nos dois lados. Mas a caricatura ajuda a ver a linha de força que costuma passar despercebida.
É aí que Bourdieu volta à cena. O desconforto com o sertanejo raramente é apenas musical. A letra repetitiva, o arranjo previsível, o cantor em chave caricatural são o pretexto. O incômodo é com o mundo que está ali: corpos, modos de falar, jeito de se divertir. O habitus se protege. A recusa à música é, ao mesmo tempo, recusa às pessoas associadas a ela. Chamando isso de “gosto”, a pessoa sente que está apenas exercendo uma preferência inocente.
Eu mesmo não estou fora disso. Já cantei sertanejo em festa, cercado de gente feliz, e já torci o nariz para o mesmo repertório em outros contextos. E eu sei o gosto amargo disso: quando torço o nariz, quase sempre estou me defendendo de um mundo que não é o meu — e chamando isso, com alívio, de “meu gosto”. Também já vi orquestras sinfônicas tocando para trabalhadores e pessoas pobres, em espaços abertos ou ações culturais, e vi nos rostos a mesma surpresa e o mesmo encantamento que se atribui ao “público refinado”. Lembro, por exemplo, de um fim de tarde em que uma orquestra tocou em praça aberta para gente que saía do trabalho; o silêncio atento e o espanto diante de um tema de Beethoven eram idênticos aos de qualquer plateia de teatro. Quando o tema voltou, vi gente sorrir sem perceber, como quem reconhece algo que nunca tinha tido permissão de reconhecer. Não faltava “gosto” ali; faltava acesso, hábito, convite para voltar. O corpo que canta uma “música ruim” aos gritos é o mesmo que pode se comover diante de uma sinfonia, se o caminho até ela não for bloqueado por preço, código e constrangimento.
Isso não significa que quem está no estádio seja simples massa hipnotizada. Há prazer verdadeiro, memória, identificação, histórias de vida embutidas nesses shows. As pessoas se apropriam das canções, transformam refrões em lema, usam a mesma fórmula industrial para contar o próprio drama. O fato de a indústria explorar isso não esgota o sentido que o público produz ali — mas o texto está interessado justamente no ponto em que a exploração e a identificação se confundem.
A sala de concerto funciona ao contrário — com nuances. O entusiasmo quase automático em relação ao “grande repertório”, ao maestro famoso, à figura do solista, raramente nasce do zero. É produto de aprendizagem silenciosa: ir ao teatro desde cedo, não se sentir deslocado com roupas, códigos, preços, formalidades. Essa familiaridade custa caro e não é distribuída por igual. A reverência educada também é aprendida. Quando alguém comenta “não é para qualquer um”, está descrevendo o fato e, ao mesmo tempo, se distinguindo.
De outro lado, há hoje quem transite entre estádio e teatro com desenvoltura e faça disso um estilo. Ouve Beethoven e funk, cita Mahler e canta sertanejo “ruim” com gosto, às vezes com ironia controlada. Esse onivorismo não dissolve a distinção; muitas vezes a sofistica: circular por todos os códigos, inclusive pelo “cafona”, vira uma forma nova de superioridade. Em geral, nem todo mundo pode bancar esse personagem onívoro: trata-se de uma fração específica da classe média e alta, dotada de capital cultural suficiente para provar todos os cardápios sem ser confundida com nenhum. Para esses, assumir o “gosto ruim” vira um luxo: brincar com o kitsch e com o popular sabendo que, no fim do dia, o rótulo de “bom gosto” continua garantido. Muitos artistas e produtores jogam conscientemente com esse tabuleiro: exageram o “cafona”, polem o “erudito”,atravessam fronteiras de gênero e público. Nem por isso deixam de ser rapidamente recapturados pelo mercado, que transforma até a subversão em nicho rentável.
O que Bourdieu aponta continua simples e desagradável: o sertanejo vira prova de mau gosto alheio; o concerto, prova de valor próprio — ou, no caso do onívoro, prova de versatilidade de quem supostamente está acima dessas fronteiras. A frase “gosto não se discute” impede que se pergunte como se formaram esses corpos tão à vontade em certos espaços e tão desconcertados em outros — e vice-versa.
Adorno, sentado na mesma fileira, não deixa ninguém em paz. O show de sertanejo universitário, com seus refrões idênticos e seu drama amoroso em série, é um exemplo claro da indústria cultural que ele descreve: canções desenhadas para apreensão imediata, baixo custo cognitivo e alta memorabilidade afetiva.
Mas o teatro também está dentro do circuito. Gravações de Beethoven vendidas como produto de distinção, temporadas estruturadas como calendário de consumo, campanhas que transformam o concerto em “experiência completa”: a gramática mercantil atravessa tudo. A presença dos violinos não altera a gramática mercantil; apenas a torna mais discreta. Os sistemas de recomendação e a curadoria humana exploram os mesmos sinais: hábito, expectativa e medo de destoar. Na era digital, tanto o hit popular quanto a “obra-prima” erudita são enquadradas na lógica da plataforma, onde a sua validade é medida em tempo de streaming e engajamento.
O mesmo sujeito que se orgulha de não suportar o sertanejo por ser “fórmula pronta” pode passar anos ouvindo sempre as mesmas sinfonias, aplaudindo sempre os mesmos gestos, repetindo sempre as mesmas histórias sobre “gênios” sem jamais estranhar o circuito repetitivo. O cenário muda; o automatismo do hábito persiste.
Estádio e teatro, vistos de perto, não são extremos de uma guerra do gosto. São dois dispositivos em que classe e mercado se encaixam de jeitos diferentes. Às vezes, há cruzamentos incômodos — orquestra com cantor popular, sertanejo com arranjo mais elaborado, plateias periféricas em óperas — e justamente aí o desconforto mostra o quanto as fronteiras seguem vivas. Noutro registro, há contra-ataque simbólico: para muita gente, dizer “sertanejo é do povo, erudito é coisa de rico” não é só simplificar, é afirmar um lado, transformar o popular em emblema de orgulho e resistência contra o que se percebe como cultura de elite. É ainda uma forma de recusar o jogo como foi proposto: se o “bom gosto” oficial me exclui, inverto o sinal e faço do que é meu a medida — devolvendo para a chamada cultura legítima o rótulo de fria, artificial, “de rico”.
Bourdieu ajuda a ver que desprezo e prestígio grudam primeiro em grupos, depois nas obras. Adorno ajuda a ver que trocar de prateleira não basta para escapar da lógica da mercadoria. O sertanejo de estádio e o Beethoven de assinatura só começam a ficar interessantes quando se deixa de lado o “cada um com o seu gosto” e se pergunta quem se beneficia, quem é barrado e quem é mantido confortável o suficiente para não estranhar, inclusive por meio da curadoria algorítmica que simula liberdade de escolha.
Essas brechas — o cantor que se envergonha do próprio repertório e ao mesmo tempo o defende, o trabalhador que se encanta com uma orquestra em lugar improvável — não anulam o que Bourdieu e Adorno mostram. Elas apenas lembram que nenhuma grelha sociológica esgota a experiência. Há sempre um resto que escapa, uma emoção que atravessa códigos e estatísticas. Esse resto não derruba hierarquias por conta própria, mas impede que o diagnóstico se confunda com fatalismo confortável.
Voltando à escala miúda do cotidiano, o mecanismo permanece. Aquilo que alguém chama de “lixo” quase sempre vem acompanhado de um rosto, um sotaque, um jeito de viver. Aquilo quese chama de “refinado” traz, escondido, a figura imaginária de quem seria o “público certo” para aquilo. O “eu só gosto disso” é muitas vezes um nome de fantasia para medo, desejo de pertencimento, ressentimento ou vaidade.
Nesse contexto, “gosto não se discute” é uma frase extremamente útil. Protege o desprezo de classe travestido de refinamento e protege a mercadoria travestida de espontaneidade. Se ninguém faz pergunta, o paladar continua sendo campo de adestramento e exclusão. Cada um se crê livre enquanto repete, sem perceber, o que foi treinado a fazer.
Discutir gosto, aqui, não é montar júri para condenar quem ouve isso ou aquilo. É aceitar uma tarefa menos heroica e mais incômoda: desconfiar de si. Perguntar, com alguma crueldade: por que isso me acalma tanto? O que naquele outro me constrange? O que entra em cena quando pronuncio “bom gosto” com segurança? Esse exercício não purifica ninguém; no máximo, reduz a ingenuidade. O “meu gosto” aparece como ponto de encontro de classe, história, mercado, lembranças, medos, desejos. Recusar-se a ver isso não é defender a liberdade de gostar do que se quer; é defender o sossego do próprio lugar.
“Gosto não se discute” combina bem demais com um mundo que quer continuar igual. Em vez de blindar o gosto, vale suspeitar dele e explicitar o que ele aprendeu e o que ele protege. O resto tende a virar ruído de fundo — o suficiente para não notarmos quem escolhe por nós.
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