Singularidades de uma Rapariga Loura (Portugal, 2009)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Singularidades de uma Rapariga Loura (Portugal, 2009)

13 de Junho de 2015 às 14:35

"Marcela amou-me durante quinze meses
e onze contos de réis..."
Machado de Assis

“Singularidades de uma Rapariga Loura”, obra escrita por Eça de Queiroz em 1874, é considerado o primeiro conto português cuja estrutura seguiu com rigor os preceitos do realismo como escola literária.

O texto conta a história do amor de Macário, jovem honesto e trabalhador, pela bela Luiza. A trama original é contada em terceira pessoa, por um narrador-personagem que conheceu Macário há alguns anos, em uma noite fria e seca de setembro em uma estalagem do Minho, em Portugal. A princípio pareceu se tratar de mais um caso banal de amor não correspondido - “Começou-me por dizer que seu caso era simples- e que se chamava Macário...” – afinal, quem nunca viveu uma decepção amorosa?

Uma tarde em seu escritório, localizado no terceiro andar do armazém de seu tio Francisco, Macário avista sua nova vizinha pela janela, coberta pelas cortinas transparentes que envolviam em mistério a silhueta da jovem. A fronte de Luiza ainda não se encontrava esculpida pelo o olhar cortante do admirador, em virtude da distração que o oscilar do leque chinês imprimia no desnorteado Macário. Quando os olhares se cruzaram, o chão e os prédios balouçaram mais que o leque de Luiza, porém menos que o terremoto a atormentar o peito de Macário.

Os fatos são narrados de acordo com os “tempos” em que Macário, inconscientemente ou não, rotula seus sentimentos. As lembranças boas ficam suspensas nas horas; as ruins se passam em um átimo de segundo. A realidade que chega ao narrador-personagem passa inicialmente pelo crivo do próprio Macário que “conta a um desconhecido, o que não conta à sua mulher nem ao seu amigo.” Ao ouvir a história diretamente de Macário, única testemunha do acontecido, o narrador tenta filtrar no discurso o que é real ou dissimulado, para finalmente construir o retrato legítimo da triste história que ainda faz chorar Macário,  um velho de 60 anos.

O desafio maior, mas não o único, de filmar uma obra como “Singularidades de uma Rapariga Loura” é estruturar uma narrativa onde a dimensão ficcional não extrapole os limites da arte cinematográfica sem perder em verossimilhança.

A rica história, como estrutura diegética, necessita de atribuições bem definidas do tempo e espaço narrativos. O trabalho de Manoel de Oliveira consiste em estruturar o tempo dos acontecimentos contados por Macário com o tempo interno do conto onde o narrador nos “repassa” a trama, bem como fixar o espaço narrativo em um ambiente que trouxesse a mesma força poética da palavra escrita. Especialmente por se tratar de um enredo com alta carga dramática, a mise-en-scène tem papel fundamental para recriar a ambientação do livro: seja na dança de Macário antes de conhecer Luiza ou nas tomadas panorâmicas sobre o bairro Alfama, em Lisboa – todos estes elementos moldam fielmente à tela a história do livro.

A liberdade com a qual Manoel de Oliveira brinca com os tempos narrativos é ilustrada quando Luiz Miguel Cintra declama um poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, como quem endereça a Macário uma mensagem sobre o real sentido da vida e sobre as “reais” intenções da moça. Há um reforço da universalidade dos acontecimentos, pois Fernando Pessoa só viria a nascer em 1888 enquanto o conto original data de 1874, mais de 10 anos antes.

A construção dos personagens, respeitando os detalhes que escondem as suas individualidades, pulsões e fragilidades, funciona bem no cinema de Manoel de Oliveira. Quando se revela o que há embaixo do manto construído pelo diretor: o ser no estado bruto - raramente há oposição do caráter do indivíduo, que é falho e revela a real intenção dos atos e comportamentos. Desta forma, o telespectador sente o enredo naturalmente e delineia os personagens a despeito de inúmeras elipses e cortes temporais existentes no roteiro.  

Estes e outros pormenores comumente levam a impressão de que o cinema de Manoel de Oliveira seria um cinema aparentemente fácil de realizar. Entretanto o diretor filmou “Singularidades de uma rapariga loura” em 2009, prestes a completar 102 anos de vida, quando tinha em seu currículo mais de 70 anos de carreira e uma infinidade filmes e prêmios, inclusive o título de maior cineasta da história de Portugal.

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Olha como ela balança, se vira, se porta. Um bocejo como uma bela flor a desabrochar.  Ninguém se contém com o traquejo da pequena. É obra de Deus, não pode ser mais tenra. Querê-la é mais que sonhar. Mentira quem viu e se absteve a elogiar. Mesmo os cegos hão de se lamentar pela tristeza de não poder desejar tal beleza. 

Eu, desde a juventude, me pus no bom serviço. Sempre ignorei aquela locação dos bêbados, vagabundos, ordinários e indecentes. Posto que sempre me fiz presente quando a vida me exigia. O charme do larápio não me atraiu mais que o do herói. Assim na criação não pude ser atroz. A vida me pôs no eixo, e com meus trejeitos, meio que sem jeito, nunca me rejeito em estar na frente da artilharia.

O destino comigo não foi vil. Eu e ela a princípio não fluiu. Eu queria os meus desejos. Ela, com seus passos, disfarces de fera, me seguiu. A travessia, ao me ver, feriu os dois, como quem não espera.

Nos meus olhos, parecia mais bela. Eu, menos vagabundo. E o mundo, por se dizer esfera, fez de um encontro fugaz, profundo.

Quando me apaixonei, tive o mundo contra minha pessoa. Aturdido não me fiz por vencido. Dizem que o olhar do apaixonado côa as impurezas dos artifícios, que distinguem uma vida ruim de uma boa.

No oriente, me pus a trabalhar. O instrumento do trabalho me cansava a pensar. Mas nunca me pus alheio ao sentimento. Quando pensava no momento de regressar, o cansaço, que há muito me consumia, só diminuía o meu lamento.

Ao retornar das índias, encontrei-a no manto de choro. Vi em seus olhos uma espécie de gozo, que não correspondia. Seria minha presença ou a matéria que eu havia? Mesmo assim eu ia e ia.

Quanto vale um leque chinês em mãos de desafortunados? E doze mil réis de lenços roubados?  O peso de uma moeda de ouro que não cai no tablado, mas em um bolso de fundo falso.

Ai meu Deus em que estado me detive, entrei em desespero, roguei aos céus pela primeira e única vez quando percebi os pormenores de Vênus. Agora ferido, me tornei embrutecido mas carrego comigo o orgulho de ter sobrevivido aos perigos dos homens, do coração e do espírito. 

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