Solaris (U.S.S.R., 1972)

Por Diego de Montalvão, em MÚSICA

Solaris (U.S.S.R., 1972)

04 de Junho de 2014 às 23:01

Toda forma de expressão artística parte do princípio que o homem não encerra verdades universais. A arte é própria do ser humano e não existe nas outras espécies. Ciente de sua finitude, não resta ao homem alternativa senão tentar desvendar os mistérios da vida, ou fazer destes mistérios elemento central para burlar a angústia que a consciência do ser carrega.

O que dizer das ações que buscam desvendar estas verdades e que envolvam mais lucidez e sobriedade como, por exemplo, o exercício do conhecimento científico? Seria a ciência capaz de aliviar os anseios das almas dos homens e torná-los mais conformados?

De acordo com o cineasta russo Andrei Tarkovski em Solaris (1972), a resposta a estes questionamentos pode ser positiva, mas carrega muita inquietação filosófica. Alías, o diretor russo, influenciado pelos conterrâneos Tolstoi e Dostoievski, constrói uma jornada poética cheia de discussões enriquecedoras fundo à alma humana. O longa-metragem tem a capacidade de abordar a ficção científica, tema corriqueiro no cinema Hollywoodiano, mesmo se comportando como uma antítese das produções norte-americanas.

O enredo foca na missão de Kelvin (Donata Banionis), psiquiatra responsável por decidir sobre a continuidade da estação espacial que orbita o planeta Solaris. O oceano do planeta é capaz de exercer influência sobre a mente dos homens, tornando as memórias vívidas. Este fato acaba por ultrapassar os limites do conhecimento humano. E o que este planeta tem de tão especial? As pessoas que orbitam Solaris têm suas lembranças e angústias materializadas pela massa pensante que é o oceano do planeta.

Após anos de funcionamento, dos 86 tripulantes da missão original, restam apenas dois participantes no projeto da solarística: Sartorius (Juri Jarvet) e Snaut (Anatoli Solonitsyn). O experiente cientista Guibarian acabara de cometer suicídio e Burton fora afastado da missão espacial por ter sofrido uma crise paranóica durante sua última expedição ao planeta. O psiquiatra Kelvin, pela sua visão positivista e anti-romântica diante da ciência, é o escolhido para resolver o futuro do projeto Solaris.

Quando Kelvin desembarca em Solaris, logo percebe que os dois cientistas restantes da expedição, Snaut  e Sartorius, agem de forma estranha e evasiva. Seguindo a trama, Kelvin é surpreendido pela presença de outros ocupantes dentro da estação espacial. Julgando estar sofrendo de alucinações pela influência da atmosfera de Solaris, não demora muito até que kelvin comece a receber suas próprias “visitas” durante a estada na órbita solarística

Kelvin, o protagonista, dono de uma visão cética, que fora repreendido por seu pai logo no início do filme - A Terra adaptou-se a homens do seu tipo, embora isso tenha custado a humanidade - logo se destitui de sua bruta racionalidade, ao ponto que recebe visitas de Hari (Natalya Bondarchuk), sua ex-esposa que se suicidara há mais de 10 anos. Neste momento fica clara a pretensão de Andrei Tarkovski: o grande objetivo de Solaris é transcender os significados dos termos conhecimento e ética para discutir o sofrimento humano.

Para o diretor, o conhecimento só é válido quando usado para aliviar o sofrimento. E a mola propulsora do estudo científico, se ela parte de conflitos interiores, deve a resposta servir a questões relacionadas à alma, e não ao que está externo aos homens. Este artifício justifica o fato de Kelvin ter de viajar anos-luz à Solaris para entrar em contato e conhecer justamente seu próprio eu, simbolizado por Hari, que é a personificação de sua memória.

O longa-metragem trata de abordar a crise de identidade que o homem moderno carrega em si. Durante a cena mais representativa do filme, o encontro entre os 3 cientistas e Hari na biblioteca, Snaut profetiza: “Dizemos que queremos conquistar o Cosmos. Na realidade só queremos aproximar a Terra das fronteira dele. Estamos na situação idiota de que aspira a um objetivo que teme e que não necessita.” E finaliza: “O homem precisa do homem.” Quando ligamos este discurso com outra passagem do filme que diz: “lembra-se das atribulações de Tolstoi, que sofria por não poder amar toda humanidade”, temos consciência da real missão de Kelvin.

O protagonista simboliza o homem atual em meio a uma crise de valores que dilaceram nossas almas, postadas em xeque pela modernidade. Além da necessidade do homem conhecer-se a si próprio, o diretor enfatiza que a boa relação entre o homem e sua consciência deve preceder qualquer descoberta científica.

Estas e outras discussões filosóficas são analisadas com maestria pelo estilo cinematográfico de Tarkovski. O refinamento no uso do extra-campo para compor os planos longos e as cenas com poucos movimentos é primoroso.  O lendário plano final fecha o filme de forma magistral e, em até certo ponto, traz um olhar otimista sobre o futuro da humanidade.

Detentor de uma carreira sólida, Andrei Tarkovski é um dos maiores realizadores da história do cinema mundial.  Tudo relacionado ao diretor russo é constituído de um certo ar sublime. Tendo dedicado a vida inteira às artes, sempre foi defensor que o cinema deve soar como expressão cultural, negando-se a usar roteiros repetitivos ou narrar temáticas rasas. Embora Solaris não seja considerada uma de suas obras-primas, ganhou o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes em 1972 e divide com 2001:Uma Odisséia no Espaço(Stanley Kubrick) o título de melhor filme de ficção científica já produzido na história do cinema. 

Voltar