Tales, o sabotador

Por Raul Lopes, em CONTOS

Tales, o sabotador

25 de Maio de 2018 às 20:35

Triste, ma non tropo. Alegre, ma non tropo. Lúcido, sempre. Assim Tales empurrava a vida.

Dentro de um espiral, no centro, as coisas não giram, tudo é estático. É um local confortável. Ao seu redor, uma espessa parede giratória que o impede de fugir. Tales estava parado, preso no meio daquele redemoinho, até o dia em que resolveu sair.

"Vou me livrar de tudo, é hoje. Para que guardo isso? Nunca vou usar, nem preciso disso, vou dar para quem realmente precisa."

"Para quem devo entregar? Isso ainda não sei, mas até essa pessoa aparecer pode ficar comigo, eu guardo, protejo e não deixo deteriorar, eu sempre soube cuidar."

O impulso do primário pensamento leva Tales a mover-se do epicentro, forçando-o a dar um segundo passo.

"Não preciso de tudo isso, certamente tem gente que precisa mais do que eu. Acontece que essas coisas não foram feitas para dar. Ou se ganha ou se acha, no meu caso eu achei tudo, por isso me sinto dono, posso guardar, posso cuidar, sei que posso fazer isso melhor do que qualquer um, mas hoje decidi, vou desapegar, vou jogar fora. Não, melhor, vou doar. Doar? Não sei, sempre acho que o doado leva na coisa o desprezo de quem entrega. E quem quer receber algo que o outro desprezou?"

"Utilidade... será que para mim essas coisas são úteis? Como assim úteis? Eu nunca as usei. Talvez por isso quero entregar e não doar, acho que assim me sinto melhor."

São quase 3 da tarde e Tales nada fez, não entregou nada. Mesmo assim,  Tales começa a sentir que deu um passo para fora do centro desse furacão, já se sente enjoado.

“Será que vou perder essa chance? Basta continuar, tenho certeza que em uma semana consigo me livrar de todo o excesso e ficar apenas com o que preciso. Fácil, ma non troppo."

"Vamos lá, vai ser assim, o primeiro que passar eu entrego aquilo que menos gosto, sei que isso vai me custar caro mas com o tempo conseguirei entregar aquilo que mais tenho apego ."

"Se é tão difícil porque não começo com o mais valioso? Assim será mais fácil ainda. Numa ordem decrescente o final vai exigir menos esforço e ficará menos doloroso, será bom porque a essa altura já estarei fadigado. Posso até entregar tudo pra uma só pessoa, daí ele faz o que quiser, até porque não me importo mais."

 

"Me sinto como se o mundo estivesse girando cada vez mais rápido, mas uma força me empurra pro centro, tenho que ser forte e resolver isso de uma vez por todas, me livrar de todo esse entulho que se amontoa e toma o espaço de coisas que realmente preciso e que ainda não tenho, até porque o que seria do mundo se não existisse aquilo que não precisamos."

"Como será o amanhã sem tudo aquilo que guardei e esperei para usar, sem aquilo que acumulei para não me preocupar com a escassez?"

"Já são 18 horas, acho que essa hora ninguém vai ter tempo de receber mais nada, é a hora da pressa, do "agora não, amanhã". Por outro lado, posso esperar mais duas horas para iniciar aquela fase em que todos querem receber alguma coisa. Mas será que o que tenho os interessa? Pra que uma dúvida uma hora dessas? Tenho a impressão que destruo com facilidade tudo aquilo que com grande esforço consigo edificar, e quando acontece logo lembro do gemido dos gregos, daqueles que possuem a alma aflita: “Ai de mim, ai de mim...”"

"E nada, já são 22 horas e pra mim é tarde, mas não posso desistir, é hoje, tem que ser hoje. Vamos lá, vou escolher na ordem daquilo que mais tenho mais apreço, assim vai ficar fácil terminar. "

"Assim fiquei, das 22 as 02 e ninguém levou nada. Vai ver nada era interessante. Já entendi, a verdade é que ou outros não sabem o valor dessas coisas, não sabem de nada ou talvez essas coisas somente servirão pra mim, eu sei como usa-las, claro! Fui eu que achei, é meu, porque vou entregar para alguém que não quer? Se quiser venha pegar, mas agora quem não entrega sou eu. Porque tudo está parado?"

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