Um corpo que cai

Por Márcio Barros, em CONTOS

Um corpo que cai

19 de Fevereiro de 2021 às 12:43

À meia noite de um sábado, na pracinha deserta, Nonato fuma  a última pedra de crack. Depois de dois anos limpo, teve uma recaída na primeira semana de trabalho. Só queria comemorar o novo emprego e aliviar a tensão. Sem perceber, já estava a várias horas chapado. Quando termina de fumar a pedra, adormece sentado no balanço de criança da pracinha. Não percebe algo que caía de um dos prédios ao lado.

 

Era o corpo de Luana, que se jogou do décimo quinto andar, onde morava sozinha. Depois de um coquetel de Valium, cocaína e álcool, voltou a ouvir as vozes de sempre, uma delas bramindo imprecações de maneira insuportável, não lhe restando outra opção que não fugir para longe, bem longe.

 

No décimo andar do mesmo prédio, Andrade não vê o corpo despencando na janela em frente. Está concentrado demais nas quadras que tem em mãos naquela partida. Àquela altura, já penhorou a casa e o carro. Sabe que não há como fugir dos juros obscenos dos credores nem do pedido de divórcio da mulher mas ainda acredita que reverterá o jogo.

 

No prédio em frente, Nogueira tem mais uma discussão violenta com a esposa, depois de um dia de porre. Alguma coisa dita despertou-lhe sentimentos desagradáveis, adormecidos. Teve um apagão. Quando deu por si, estava diante do corpo da mulher de arma em punho. Havia disparado cinco tiros à queima roupa.   Num misto de desespero, torpor e remorso, abraça-lhe o corpo agonizante e ensanguentado. Não teria condições de perceber o acidente que acabara de ocorrer num dos cruzamentos próximos ao prédio.

 

O conversível vermelho de Leonora avança o sinal vermelho, chocando-se contra um caminhão de lixo. Depois de um dia longo de iate, espumante e cocaína com algumas amigas e uns coroas, voltava para casa. Queria testar a potência do motor 4.0 do Porsche novo, aproveitando o sincronismo dos sinais verdes. Gostava de sentir o vento alisando o rosto, esvoaçando os cabelos. Era como se estivesse voando. Achou que daria tempo de passar pelo último...  Presa às ferragens, não teria como supor o corpo que caía a alguns metros acima, nem uma garotinha, num dos prédios ao lado, chamando os pais para verem algo na janela, minutos antes. Marina já os havia chamado, pelo menos umas três vezes, mas eles continuavam inertes, zapeando os smartphones brilhantes na poltrona da sala.

 

Marina aproximou-se novamente da janela. Olhou embaixo mais uma vez. Queria perguntar aos pais o que aquele homem fazia sentado no balanço do parquinho da praça. Parecia triste. Talvez estivesse dormindo. Enquanto o observava, com as mãos espalmadas no vidro, um movimento estranho no prédio em frente lhe chamou a atenção. A imagem do seu rosto projetada no vidro fundia-se com a do corpo que caía, como se brotasse de um canto de seu olho, transpassando em lágrima. Era o corpo de Luana, que acabara de se atirar do décimo quinto andar.

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