Uma manhã comum

Por Mine Castro, em CONTOS

Uma manhã comum

18 de Abril de 2022 às 11:48

Uma manhã comum. Acordo quando me sinto descansada, levanto, abraço o Oliver e abro a janela. Intuitivamente sequencio os primeiros hábitos de higiene e, em seguida, começo a preparar meu café da manhã. Gosto muito da calmaria e da paz matinal, da solidão na cozinha, de sempre ter música ao fundo e as flores na varanda, com uma réstia de sol a demarcar luz e sombra no chão. Entra a manhã. O Oliver a correr feliz, até sua alegria em movimento alcançar meu coração. 

Ponho Beatles para tocar; a playlist desliza para Pink Floyd — pasme, em “Breathe”; Sincronicidade? — uma vez mais, para alguma música latina que me faz dançar, enquanto preparo a massa do cuscuz. Sento à mesa com o café quente e, no primeiro gole, já é Djavan em “Oceano”. 

Corro o continente inteiro, minhas playlists visitam o outro hemisfério e tudo resvala no mesmo horizonte: o oceano, o mar, o imenso. O mesmo mar do “afogamento” que canta o Gil, e no qual eu posso caber inteira, sem um centímetro fora deste manto-música. Não vou me salvar, pressinto. “Amar é um deserto e seus temores / não sabe voltar / você deságua em mim e eu, oceano / esqueço que amar é quase uma dor”. Se for como na canção, o fim é iminente. É por isso que fujo do Djavan. Ele tem uma visão muito melancólica, excessivamente passional e submissa quanto ao amor, que não deixa de ser real e, talvez, seja até mesmo o seu retrato mais fiel e eu concordo tanto que me chateio. Chego a ter raiva dessa perspectiva dele. E se eu cantasse ao avesso? E se comigo o amor pudesse ter outro tom? Que pergunta idiota! Não seria melhor desistir de amar? Fugir do desejo é uma saída? Existiria vida assim? Sei as respostas, mas gostaria muito de não sabê-las; só por saber e não conseguir guardar em mim essa angústia, é que escrevo.

Na perspectiva mais otimista, está “afogamento”, a música, especialmente quando recomenda “relaxar e se entregar completamente ao mar…” O instante que antecede este afogamento é o mesmo instante antes do beijo na escultura “Psiquê reanimada pelo beijo do amor”, de Antonio Canova: o desejo puro, no cume, a mirar o gozo. A vida é só esse instante e nada mais. 

 

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