A camisola

Por Leandro Lages, em CONTOS

A camisola

25 de Março de 2023 às 22:28

Ele conhecia o baixo meretrício da Paissandu como ninguém. Cedo começou a trabalhar como garçon em uma daquelas casas. Respeitoso com a clientela, querido pelas profissionais e tido como confiável e diligente pelas cafetinas.

Vez por outra encerrava o expediente na mesa de algum cliente que insistia em ouvi-lo dedilhando um violão.

A noite o ensinou a tocar e sua voz enquadrava bem Adoniran Barbosa, Nelson Gonçalves e Paulo Sérgio.

Quando isso acontecia, a gorjeta vinha generosa. Cada música recitada rendia uma cédula extra e mais uma saideira para o caixa do bar.

A vida nesse ambiente o ensinou a trabalhar de garçon, cozinhar, tocar violão e ouvir músicas. Também aprendeu a respeitar mulher e a conviver com as malícias da noite.

E foi numa dessas noites que se apaixonou por ela, recém chegada para trabalhar naquela casa.

Foi uma paixão recíproca, surgida enquanto ele tocava “Rosa”, de Orlando Silva. Ela finalizara com o último cliente da noite e sentou à mesa em que ele atendia a pedidos musicais de um ébrio qualquer.

E assim brotou esse improvável namoro, que persistiu mesmo quando ela passou a trabalhar em outra casa da Paissandu.

A rotina dele mudou. Findo o expediente, dirigia-se para onde ela trabalhava e por lá ficava até que ela finalizasse o atendimento do último cliente.

O restante da noite era exclusiva deles, pernas trançadas a semearem sonhos de uma outra vida com trabalho durante o dia e com a noite apenas para dormir. E o curso da vida seguia.

Naquela noite, após despachar o último cliente com a desculpa de que o estoque de cerveja acabara, ele foi às pressas encontrá-la. Não sem antes lavar o rosto, as axilas e algo mais.

Lá chegando, percebeu o olhar de desconfiança de todos que o conheciam. Desconversaram quando perguntou por ela. Ainda no trabalho? Saiu? Não voltou? Veio hoje?

Até que uma piedosa amiga lhe revelou a dura verdade: ela fugiu com um cliente, às pressas, com mala e tudo rumo ao Pará, nem sequer pegou o apurado do dia.

Sem acreditar, ele adentrou no quarto em que ela trabalhava. Um vazio denunciava a ausência repentina de uma inquilina que não mais voltaria.

Uma camisola esquecida em cima da cama era o último vestígio de sua presença. Sem acreditar, ele se jogou na cama e abraçou a camisola que ainda guardava o cheiro dela mesclado com o odor de outros amores.

Adormeceu de tanto chorar, abraçado àquela camisola, como se fosse ela em despedida. E sonhou todos os sonhos que sonhara com ela em noites pretéritas. Depois sonhou que era realidade aquela partida definitiva.

E, por fim, acordou resolvido a nunca mais sonhar com ela, deixando para trás aquela camisola que, naquela noite, embalara amores e enxugara lágrimas.

***

Post Scriptum: relato ouvido em uma noite qualquer no Club VTS, nas proximidades da Paissandu.

Voltar