Aquarius(Brasil, 2016)

Por Leandro Lages, em CINEMA

Aquarius(Brasil, 2016)

21 de Setembro de 2016 às 02:13

No fim da década de 1980 uma obra se destacou em um mercado até então afeito ao entretenimento lúdico das revistas em quadrinhos: O Edifício, de Will Eisner.
A obra chamava a atenção por enfrentar uma perspectiva diferente, instigando o leitor a refletir a respeito de problemas inéditos na vida urbana.
Eisner questionava a evolução urbana e as relações sociais confessando sentir uma grande perturbação com a demolição de prédios por acreditar que, de alguma forma, eles possuíam almas.
Para ele, as estrutura urbanas eram marcadas pelos risos e manchadas por lágrimas, e ao fazerem parte de nossas vidas absorviam as radiações provenientes da interação humana.
A obra relata a vida de quatro personagens que possuíam ligações com um Edifício, testemunha diária de suas angústias, rotinas e dramas. No decorrer da leitura o leitor percebe ser o Edifício o grande protagonista do enredo.
O velho edifício fora demolido para a construção de uma estrutura mais moderna. Após a demolição, a sensibilidade de Eisner aflora ao relatar que “em seu lugar restou apenas uma lúgubre cavidade e resíduos de destroços psíquicos”.
Somente um gênio do quilate de Will Eisner para nos fazer acreditar que uma estrutura inerte de concreto possui sentimentos. Quase 30 anos depois, o diretor Kleber Mendonça Filho atingiu o mesmo propósito com o filme Aquarius.
Aquarius comporta uma dezena de interpretações nos mais diversos matizes: dramas familiares, relações sociais, saudosismo, liberdade sexual, atuação da imprensa, especulação imobiliária, desenvolvimento, direito de propriedade, vida na terceira idade, afora vários outros.
O filme aborda o drama de Clara, jornalista viúva e aposentada, residente em um edifício onde guarda as recordações de sua vida e que passa a sofrer assédios de uma construtora que deseja adquirir o seu apartamento para construir um prédio moderno.
Todos já venderam seus apartamentos, resta apenas o de Clara, mas ela rejeita todas as tentadoras propostas, travando a construção do novo empreendimento.
O interior do apartamento reflete a personalidade de Clara: um cartaz de Barry Lindon, um dos melhores e menos conhecidos filmes de Stanley Kubrick, um livro de Virgínia Woolf, outro de David Bowie, afora vários outros livros e discos de vinil de Maria Betânia, Queen, Beatles e Roberto Carlos.
Um dos momentos interessantes do filme passa pela trilha sonora. A fim de perturbar o sossego de Clara para convencê-la a sair do apartamento, a construtora promove festas que varam a madrugada no apartamento vizinho.
Ao perceber a intenção da construtora, Clara resiste. Ao som da balada mecânica, ela ouve Villa Lobos no mais alto volume, e o rock do Queen rebate o forró metalizado.
O velho Edifício reage ao novo empreendimento. A velha Clara resiste às investidas do jovem empresário. Clara e o Edifício Aquarius representam o mesmo personagem.
Nesse momento é possível perceber que o filme retrata um choque de culturas e gerações. As novas culturas sepultam os antigos hábitos ou a convivência de ambos é possível?
Em minha colação de grau ouvi do paraninfo que não devemos ser alérgicos ao futuro, pois o progresso é um comboio de rodas infatigáveis que relega para trás aqueles que se rebelam contra os imperativos da dianteira.
Clara subverte essa ordem como a enfrentar um câncer agressivo. E o Edifício também. Conseguirão?
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