As onças

Por Leandro Lages, em CONTOS

As onças

05 de Dezembro de 2020 às 17:51

Era sempre assim. Quando exagerava na bebida incorporava diferentes personalidades. Os mais próximos diziam que “baixava um espírito”, única explicação razoável para tantas e repentinas mudanças de comportamento.

Por vezes, após umas cervejas, assumia o tipo melancólico em busca de alguém que lhe alugasse a escuta. Em outra oportunidade, com uma serrana encharcando o juízo, permanecia reflexivo e submerso em seus pensamentos. Vez por outra, entre goles de um uísque barato, aspergia sua revolta contra o mundo.

O mais recorrente, não importava a bebida, era o tipo chato, intragável, que repelia os que se aproximavam apesar da insistência para que permanecessem na mesa. Nem a promessa de pagar toda a conta assegurava companhia.

Intrigava saber que no dia seguinte, após transpor o longo e tormentoso vale da ressaca, surgia na mais absoluta normalidade e de nada recordava.

Lembro de uma vez em que filosofava alheio ao som da banda que tocava no clube. De pé, dedo em riste, aparentando segurar uma bíblia na outra mão e diante da mesa engarrafada de cervejas que em silêncio ouviam o sermão, professou:

A maior reta imaginada pelo homem corresponde à circunferência traçada por Deus!

A ebriedade do momento me impediu de compreender o sentido da frase. Dias depois pedi que me explicasse. Sequer sabia de onde a afirmação brotara.

Em outra ocasião recitou galanteios de fazer inveja a Neruda. Logo ele, um casca grossa de poucas letras que nunca lera uma poesia na vida e usava livros como peso de papel.

Não era seletivo nas destinatárias dos versos e elas sequer reduziam o passo ao cruzarem por ele. Naquele dia recebeu mais atenção de uma cadela vira-latas que logo seguiu adiante ao perceber que não receberia um naco do espetinho de calabresa que ele exibia na mão esquerda como se fosse um buquê de flores.

Certa vez, no período eleitoral, incorporou um político demagogo após esvaziar uma garrafa de Campari. Ainda tentei estabelecer um diálogo. Impossível. A peroração impecável de alguém outrora tímido e de poucas palavras intimidava os que sentavam à mesa.

Portou-se como os grandes oradores: oscilou o tom da voz ao argumentar, produziu silêncios estratégicos enquanto fitava cada um de nós, esmurrou a mesa nos momentos de indignação e apontou soluções fáceis para os difíceis problemas da cidade. Lançou candidatura a prefeito e prometeu nomear todos nós assessores do seu gabinete.

Mas nada se comparou à noite em que viu-se na pele de um milionário filantropo. Não sei o que ou quantas bebeu naquela ocasião. A cidade comemorava aniversário com festa em praça pública. No canto da praça, lata de cerveja fria na mão, eu proseava com um conhecido ambulante ao lado do isopor de bebidas.

 Me avistou de longe e  aproximou-se com passos resolutos e fisionomia séria. Parou na minha frente, meteu a mão no bolso, puxou uma cédula de cinquenta reais, introduziu no bolso da minha camisa com violência e vociferou:

Pegue, você está com cara de liso.

Repetiu o gesto com muitas outras pessoas, algumas das quais esbarravam nele repetidas vezes para faturar mais cinquenta.

Voltei a encontra-lo dias depois tomando um café no bar da rodoviária, encostado no balcão, cigarro entre os dedos, olhar perdido. Me aproximei sorrindo e o cumprimentei desferindo um leve tapa no ombro. Respondeu mudo com um breve aceno de cabeça indicativo de quem preferia estar só.

Abri a carteira e lhe entreguei a cédula de cinquenta reais que eu recebera na praça. Em tom de ironia, comentei:

Você pediu para eu guardar e devolver depois.

Ele olhou para a cédula sem alterar a fisionomia e segurou-a aberta com as duas mãos, fitando como a conferir a autenticidade. Com o polegar, acariciou a pata do felino estampado na cédula. Balançou a cabeça negativamente e respondeu incrédulo olhando para mim:

Soltei várias onças naquele dia, essa foi a única que voltou...

Dito isso, entornou o resto de café preto que havia na xícara, deu meia volta e seguiu caminhando, os olhos fixos na cédula como se tivesse em mãos um animal raro.

Soube que parou de beber desde quando soltou todas as suas onças na praça. Nunca mais o vi, mas sempre encontro suas múltiplas personalidades perambulando por aí. Para ele, naquele dia, a onça bebeu água.

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