Batismo de Sangue (Brasil, 2006)

Por Leandro Lages, em CINEMA

Batismo de Sangue (Brasil, 2006)

01 de Outubro de 2014 às 01:19

A política, assim como a religião, não suporta dissidências ou discordâncias. E se não consegue abatê-las pela mão de ferro do poder, recorre à difamação, à discriminação e a explicações psicológicas que reduzem o adversário a um doente mental.

Esta afirmação retrata a forma como a política partidária atua na luta pelo poder. A postura dos candidatos no período eleitoral evidencia essa conduta de difamação e desmerecimento dos adversários.

Ao comparar política e religião, a afirmação inicial deste texto assusta quando se toma conhecimento que partiu de um frade dominicano que a registrou em sua mais famosa obra: Batismo de Sangue – guerrilha e morte de Carlos Marighella.

A obra de Frei Betto retrata a participação dos frades dominicanos na luta contra o regime militar instaurado no Brasil em 1964. O convento dos frades se transformou em um ponto de apoio do grupo guerrilheiro Aliança Nacional Libertadora, sob o comando de Carlos Marighella.

O grupo de frades, do qual Frei Betto fazia parte, foi descoberto pelo serviço de inteligência dos militares. Presos, os frades foram inquiridos e torturados pelo truculento delegado Fleury para delatarem outros participantes. 

As torturas mais cruéis foram infligidas ao Frei Tito. As sequelas psíquicas e as constantes lembranças da violência sofrida levaram o frade a cometer suicídio por ocasião do seu exílio na França, não sem antes deixar uma carta relatando tudo o que passou (http://www.adital.com.br/freitito/por/pedras.html).

A obra ganhou o Prêmio Jabuti, um dos mais importantes prêmios literários nacionais, o que levou a uma adaptação ao cinema. No filme, destaque para os papéis de Caio Blat (Frei Tito), Daniel de Oliveira (Frei Betto) e Cássio Gabus Mendes, em magistral atuação incorporando toda a fúria e a frieza do delegado Fleury nas cenas de inquirição e torturas.

A exemplo de outros filmes sobre a ditatura militar, Batismo de Sangue consegue ser tão angustiante quanto "Pra Frente, Brasil" (1982) e tão bem produzido quanto "O que é isso, Companheiro" (1997). E, diferente do demais, choca ao percebermos que os tentáculos do regime não respeitaram nem mesmo o território igreja, até então sacrossanto e inviolável, única instituição fora do controle estatal-militar.

Na comparação entre a obra e o filme, impossível que o filme esgote todo o teor do livro, o qual traz uma série de reflexões e pensamentos políticos de Frei Betto sobre o momento vivido pelo país. E isso torna o livro especial e diferente de vários outros escritos sobre o assunto, que geralmente seguem uma linha de documentários.

Batismo de Sangue parece ter incentivado Frei Betto a continuar suas incursões literárias seguindo a linha tênue que separa a política e a religião, o que o levou a lançar outro livro com viés bastante político: "A Mosca Azul – Reflexões sobre o poder", no qual relata suas impressões sobre os meandros do poder por ocasião de sua brevíssima participação nos primeiros anos de governo do então presidente Lula.

Assistir (ou ler) Batismo de Sangue nos faz refletir sobre a participação política e lembrar um período em que discordar era crime de lesa-pátria, questionar poderia levar à morte e a censura era a regra maior que impedia o acesso a qualquer informação. E há quem sinta saudades desse tempo. Saudades do poder? Frei Tito não morreu em vão.

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Alguns trechos do livro – Reflexões que não constam no filme:

A versão que a polícia emite sobre presos, aprimorada pela imprensa, faz que, à imaginação alheia, eles apareçam como monstros, seres anormais dotados de taras e neuroses agudas, capazes de gestos tresloucados e impulsos homicidas.

(...)

Era eu acusado de ser o “líder”, o “cabeça”, o “cérebro”, o “dirigente”, e outras expressões tão ao gosto da vaidade humana. Tratava-se de uma técnica aprendida em cursos policiais, sobre o qual eu lera em autores do gênero: “Valorize o prisioneiro, e ele acabará assumindo as acusações mais pesadas, para fazer jus à promoção de sua imagem”.

(...)

Quero uma sociedade justa, onde a vida do ser humano socialmente mais insignificante esteja assegurada. Não me interessa se essa sociedade tem o nome de socialismo, comunismo, utopismo ou qualquer outro. Os rótulos não revelam o conteúdo.

(...)

Conta a parábola que certo monge retornava a seu mosteiro. Cruzou no caminho com uma criança maltrapilha, abatida pela fome e pelo frio. Na igreja, vociferou contra Deus, que permite sofrimentos tão injustos. “Por que o Senhor nada faz por aquela criança?” De repente, um clarão. Deus mostrou a sua face luminosa e disse a ele: “Eu já fiz: você!”

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