Claro Enigma

Por Márcio Barros, em LIVROS

Claro Enigma

28 de Dezembro de 2018 às 14:52

Nas prateleiras da livraria Anchieta, mês passado, li rapidamente alguns poemas de Claro Enigma de Drummond. Chamaram-me a atenção alguns versos rimados e metrificados, algo raro na “poética” do autor. Também me impactou a epígrafe: ‘os acontecimentos me entediam’, frase de Paul Valéry e os versos iniciais de Dissolução, o primeiro poema do livro:

“Escurece e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite[...]”

Resolvi comprar, mesmo sabendo que seria uma leitura dura e quase infrutífera. Nunca fui leitor de poesia. E a modernista, principalmente, sempre me pareceu meio inacessível, textos para iniciados com toda uma simbologia e códigos próprios que afastam aventureiros amadores como eu. 

Esse sentimento ainda se mantém, mas confesso que está bem mais dilatado, poroso para usar um vocábulo Drummondiano. A razão disso talvez tenha sido uma abertura maior à leitura de outros poetas, digamos, mais “acessíveis”, como Pessoa e Bandeira, ou um apreço (adquirido pelo hábito perene de ouvir letras de música popular) ao texto condensado e com alta carga de significado.

O contato com o poeta, ainda na adolescência, não me deixou boas impressões. Seus poemas mais célebres, os quais o próprio Drummond considerava menores, eram-me apresentados pelos professores como o suprassumo da sua poesia.  E apesar das explicações dadas à “no meio do caminho” ou “E agora José?” não compreendia o porquê de tamanha reverência e importância dadas a aqueles versos.

Anos mais tarde folheando algumas páginas de uma antologia de Fernando Pessoa descobri Tabacaria, poema em linha reta, aniversário e Não sei quantas almas eu tenho. Percebi de imediato a força aterradora daqueles versos.

No poema em linha reta, escrito há quase cem anos, senti o mesmo estranhamento do poeta ao lidar com o artificialismo hipócrita das relações sociais em que nos inserimos e de que somos partícipes, inevitavelmente:

“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
[...] estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”

Esse texto pode ser lido como uma resposta perfeita à afetação narcisista das postagens que inundam as redes sociais a cada instante e que, na realidade, escamoteiam o iceberg de dor e desespero do inconsciente coletivo atual.

Ezra Pound afirmou certa feita que o poeta é a antena da raça. Lendo os versos de Pessoa, constatei claramente isso. E agora, mergulhando em Claro Enigma percebo-o também. Como no poema ingaia ciência, também sinto a maturidade como um fardo:

“A madureza sabe o preço exato

 dos amores, dos ócios, dos quebrantos,

e nada pode contra sua ciência e nem contra si mesma.

O agudo olfato,

o agudo olhar, a mão, livre de encantos,

se destroem no sonho da existência.”

Talvez, finalmente, a máquina do mundo da poesia tenha se aberto para mim, dessa vez, porém, não a repelirei.

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