DESONRA (África do Sul, 2008)

Por Leandro Lages, em CINEMA

DESONRA (África do Sul, 2008)

27 de Abril de 2020 às 05:58

Texto em homenagem a Brigite.

Tive dois animais de estimação em minha vida. O segundo foi uma cadela chamada Hannah, vítima de uma moléstia grave que a mataria após muito sofrimento. A fim de também evitar o meu sofrimento ao vê-la agonizar em convulsões, optei por sacrifica-la.

Deitada na maca da clínica veterinária, Hannah me observava enquanto eu a acariciava. Estremeceu ao sentir a picada da agulha que inoculava o líquido letal em sua pata e continuou a me fitar, um olhar que transmitia confiança em mim, sentimento confirmado pelo afago das minhas mãos em seu pelo castanho.

Aos poucos uma letargia a dominou, os olhos cerraram entorpecidos e pude sentir com as mãos a sua última respiração quando o abdômen inflou e cedeu permanecendo estático. O fato ocorreu em 1998. Somente após ler (e assistir) DESONRA, em 2020, compreendi qual o meu sentimento após aquele incidente.

DESONRA se passa na África do Sul pós apartheid. Um momento de transição delicado e de tensa convivência entre brancos e negros. Mesmo após o fim do regime, alguns brancos não aceitavam o livre trânsito de raças. E muitos negros ainda nutriam um sentimento de rancor pelo que passaram.

O filme tomou por base o livro de igual nome, de J.M. Coetzee, sul africano galardoado com o Nobel de literatura, em 2003.

O filme, de 2008, retratou grande fidelidade ao livro, apesar de desenvolver mornamente os acontecimentos. Talvez o venerável respeito do diretor para com o autor do livro o fez valorizar tanto a fidelidade ao enredo que negligenciou o aspecto emotivo e a profundidade de algumas situações.

O enredo inicia a partir de David Lurie, um professor de meia idade que leciona literatura em Cape Town, vivenciado no filme por John Malcovich.

David é descrito como um apreciador de mulheres, justificando-se pelo fato de sempre viver entre mulheres e “à medida que mãe, tia, irmãs se foram, ele as foi substituindo por amantes, esposas, uma filha”. Também é descrito como alguém com “uma promiscuidade ansiosa e agitada, tinha casos com as esposas de colegas, pegava turistas nos bares da praia, dormia com putas”.

No entanto, David passou a sentir o vigor da juventude se esvair. Percebeu que “os olhares que um dia correspondiam ao seu deslizavam como se passassem através dele. Da noite para o dia, virou um fantasma” e começou a ter que pagar mulheres para satisfazer os seus instintos. Segundo ele, “é para isso que servem as putas, afinal: para aguentar os êxtases dos não atraentes”.

David era um solteiro resignado com uma vida monótona e desmotivado profissionalmente pelo desinteresse dos alunos nas aulas. Suas alegrias se resumiam a um encontro às quintas-feiras com uma prostituta, dia que para ele consistia em “um oásis de luxúria e volúpia no deserto da semana”.

Após ser abandonado pela prostituta, David se envolve com uma aluna. O caso é descoberto pelos pais que formalizam uma denúncia contra o professor.

O seu depoimento perante o comitê de inquérito representa um dos pontos altos do livro, pouco explorado no filme, com diálogos fortes sobre o sentido da culpa, do arrependimento e da expiação. Após os seus argumentos, David vê os integrantes do comitê que o inquirem como “caçadores que encurralam um animal estranho e não sabem como acabar com ele”.

Após o incidente, David viaja para visitar sua filha que reside em uma fazenda no interior da África do Sul. E lá mais desgraças se sucedem. E desonras também. Inclusive com a própria filha. Afora a dificuldade de adaptação.

Afinal, como conciliar sua formação profissional, social e acadêmica com a vida do campo? Como se relacionar com pessoas com as quais não possuía qualquer afinidade? E o pior: como conviver com uma cultura pós apartheid, no selvagem interior da África do Sul, onde negros não escondiam um ódio alimentado por muito tempo e ainda se sentiam credores de um regime que os massacrava?

Esse choque cultural faz lembrar a obra “O Tempo e Vento”, de Érico Veríssimo, na qual o personagem “Carl Winter”, um médico alemão apreciador de livros, vinhos e música clássica, passa a viver nos rincões do sul do Brasil no início do século XX e sofre por não encontrar alguém para partilhar um diálogo perfilado ao seu nível cultural.

A nova realidade incendeia David que, recalcitrante, resiste em compreende-la. O clima de animosidade latente vergasta cruelmente a sua filha. E para azedar mais ainda a situação, ele não consegue resgatar os laços familiares. Não há uma relação de afeto entre pai e filha, a ponto de ela não o chamar de pai, mas pelo seu nome próprio, David.

A fim de ocupar-se e atender a um pedido da filha, David inicia um trabalho voluntário em uma clínica veterinária. Sente uma repulsa inicial pelos animais, além de não haver sintonia entre o seu nível intelectual e os profissionais que lá autuam.

Na clínica há um canil com cães abandonados que aguardam adoção ou o resgate dos donos. Após algum tempo são sacrificados, não há como mantê-los, pois velhos, decrépitos, sozinhos e abandonados. David auxilia nos sacrifícios e depois leva os corpos para incineração.

Com a rotina passa a se afeiçoar aos cães. No livro percebemos que os animais projetam a personalidade dos personagens, e David sente que também leva uma vida similar à dos cães. Está velho, sozinho e abandonado. E deslocado em um novo habitat pós apartheid, presenciando violências das mais diversas matizes – físicas, psicológicas, históricas, culturais e sociais – e que não podem ser resolvidas facilmente pela lei dos homens.

Mais desgraças e desonras afloram. O “fantasma” da aluna com a qual se envolveu no início da trama reverbera em sua filha. E o caseiro que trabalha na fazenda propõe um acordo que dilacera as suas mais básicas noções de sociabilidade.

David sente que “o seu prazer de viver expirou. (...) O sangue da vida está abandonando o seu corpo e o desespero está tomando o seu lugar, um desespero que é como um gás, inodoro, insípido, impalpável”.

Diante de todas as desgraças e desonras que gravitam em seu entorno, e enquanto participa do sacrifício dos cães, aprende algo que lhe ensinará a lidar com a vida a partir de então. Percebe que ao concentrar toda a atenção no animal que está sacrificando, dá-lhe “o que não tem mais nenhuma dificuldade de chamar pelo nome correto: amor”.

Nesse momento, impossível não associar a noção de “amor” retratada em “Desonra” com o que foi demonstrando de forma crua no filme alemão “Amour”, vencedor do oscar de melhor filme estrangeiro, em 2013.

E no meio de todo esse turbilhão, David percebe que “algumas pessoas são capazes de curvar-se à tempestade; outras não, não com honra” e toma uma decisão capaz de deixar o leitor reflexivo por muito tempo após finalizar o livro.

E quanto a mim, finalmente compreendi o que senti após o sacrifício de Hannah relatado no início no texto.

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Post Scriptum: Brigite, homenagem referida no início do texto, faleceu naturalmente após vários anos de convivência e acolhimento amoroso. Foi o primeiro animal de estimação da minha família.

 

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