Deus da Carnificina (EUA, 2011)

Por Márcio Barros, em CINEMA

Deus da Carnificina (EUA, 2011)

01 de Julho de 2015 às 17:11

No centro da Sala, Diante da mesa
No fundo do prato, comida e tristeza
A gente se olha se toca e se cala
E se desentende no instante em que fala
Hora do Almoço (Belchior)

Bellum omnia omnes é uma expressão em Latim, usada por Thomas Hobbes no seu clássico Leviatã, que significa “a guerra de todos contra todos”. Hobbes queria evidenciar o Estado Natural a que estaríamos submetidos caso não houvesse as convenções estabelecidas no Contrato Social. Segundo Hobbes, o homem é, por essência, mau, egoísta e instintivo e precisa de “freios” morais para que consiga conviver adequadamente em sociedade.

Esse é o mote para o filme Deus da Carnificina (Carnage do Inglês) de Roman Polanski baseado na peça teatral God of Carnage da francesa Yasmina Reza. O filme mostra como a tênue camada de civilidade que nos envolve pode ser facilmente rompida quando deixamos aflorar nosso lado mais obscuro.

A estória começa justamente com uma cena de violência: Numa briga de crianças, Zachary Cowan atinge Ethan Longstreet com um galho de árvore, ferindo-o no rosto e quebrando dois de seus dentes. A partir de então seus pais, respectivamente, Nancy e Alan Cowan (Kate Winslet e Christoph Waltz) e Penelope e Michael Logstreet (Jodie Foster e John C. Reilly) se reúnem para tratar a questão de forma civilizada. Assim como Festim Diabólico de Hitchcock o filme se passa quase que inteiramente entre as paredes de um apartamento (Provavelmente por ambos se inspirarem em peças Teatrais).

Já nas primeiras cenas dos casais, passadas as formalidades protocolares iniciais, fica evidente a tensão entre eles. Principalmente entre Penelope e Alan. Extremos opostos, estes dois personagens parecem se encaixar perfeitamente em dois célebres arquétipos de Nelson Rodrigues: Penélope seria uma espécie de cretino fundamental e Alan um idiota da objetividade.

Segundo Nelson, o cretino fundamental seria alguém capaz de deturpar o óbvio, com suas opiniões generalistas e rasteiras sobre tudo, como a patrulha politicamente correta dos dias atuais. Já o idiota da objetividade seria alguém incapaz de enxergar as entrelinhas, um “impotente de sentimentos”. Penélope escreveu um livro sobre a África e coleciona artefatos de arte engajada. Para ela as pessoas são produtos dos meio sociais em que vivem: se um garoto age de modo violento é porque o ambiente em que foi criado o levou a isso. Alan, um advogado cínico e niilista, diz acreditar no deus da carnificina, “um deus cujas regras não foram desafiadas”. Para ele a violência é algo normal seja no Congo ou em Nova York, seja envolvendo crianças ou adultos, na verdade, para o advogado, aquela reunião era totalmente inútil e sem sentido. 

Nancy e Michael inicialmente conciliadores e submissos, vão aparecendo no decorrer da trama. Em vários momentos tentam acalmar os ânimos dos outros dois, mas acabam sendo contaminados pela animosidade latente. A cada tentativa de diálogo só fica evidente o abismo que separa os dois casais. A princípio com sutis toques de ironia e sarcasmo, a intolerância entre eles vai se desenvolvendo ao longo do filme, principalmente quando Michael oferece um scotch a Alan. Até que, enfim, todos enchem a cara e soltam as rédeas de suas vozes interiores.

De repente, os casais começam a discutir entre si. O puro malte de Michael parece liberar todos os ressentimentos, frustações e mesquinharias escondidos em anos de convivência mal suportada. A partir daí acompanhamos um festival de acusações e grosserias em que todos expõe seu lado egoísta e torpe mas ao mesmo tempo solitário e triste, como na canção Hora do Almoço de Belchior:

“Cada um guarda mais o seu segredo,
A sua mão fechada, a sua boca aberta
O seu peito deserto, sua mão parada,
Lacrada e selada,
E molhada de medo”

Por ter apenas as paredes de um apartamento como cenário, os efeitos dos diálogos são mais eficazes e nos levam a perceber que todos nós já compartilhamos, em um ou vários momentos da vida, as misérias dos dois pobres casais em nossos relacionamentos particulares. O filme desemboca numa guerra de todos contra todos com os protagonistas agindo em Estado Natural, usando o conceito de Hobbes. É como se quatro seres de planetas separados a centenas de anos-luz uns dos outros fossem de repente encarcerados em pequenos cômodos de um apartamento de classe média.

Deus da Carnificina foi lançado em 2011, seu diretor, Roman Polanski, sofreu na pele toda a brutalidade que humanidade é capaz de produzir: Em 1969, uma seita de fanáticos liderada por Charles Manson esfaqueou sua esposa Sharon Tante, então grávida de oito meses. Na década de 70, o próprio diretor foi acusado de abusar sexualmente de uma adolescente de 13 anos. O controverso caso ainda tramita nos tribunais.

No mesmo ano do filme, a Sonda Espacial Kepler, da Nasa, confirmou a existência de um exoplaneta que orbita ao redor de uma estrela semelhante ao sol e há 600 anos-luzde distância da terra. Por ter características muito parecidas com as do nosso planeta, especula-se a possibilidade de existência de vida “inteligente” por lá. É uma descoberta extraordinária, mas ao mesmo tempo irônica, principalmente por ser realizada por um ser que ainda vive quase em Estado Natural e que está a milhares de anos luz de conhecer a si próprio.

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