El Gato Desaparece (Argentina, 2011)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

El Gato Desaparece (Argentina, 2011)

20 de Agosto de 2014 às 00:38

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.” Observa príncipe Hamlet a Horácio, logo após a aparição do fantasma de seu falecido pai, o rei Hamlet. Na ocasião, o espectro vem para explicar as circunstâncias de sua morte e toda a conspiração para tomar o poder do antigo reino da Dinamarca das mãos da família de Hamlet. As revelações do espírito do velho levam o jovem príncipe, até então crente que o pai houvera morrido de uma picada de cascavel e não de assassínio, a um estado de melancolia.

Esta passagem enigmática da famosa peça de Shakespeare ilustra o poder que um acontecimento traumático exerce na sanidade de um indivíduo. A maneira universal com a qual o escritor aborda o desequilíbrio do personagem em meio ao desconcerto do mundo faz um paralelo com o recorte da vida de Luís (Luis Luque) em El gato desaparece. Os primeiros minutos do filme mostram o catedrático professor saindo de uma clínica psiquiátrica, onde estivera internado por alguns meses, em virtude uma crise psicótica desencadeada pela suspeita que Foucarde (Javier Niklison), seu assistente e colega da Universidade, estivesse roubando os temas de sua tese de estudo.

A frase dirigida por Hamlet a Horácio é citada por outro mestre da dramaturgia. Em A Cartomante, Machado de Assis abre o conto com a mesma sentença. No ensejo, ela serve de norteadora para a trama que envolve o romance proibido de Camilo e Rita. O casal encontra-se rodeado de suspeitas, onde a sensação de angústia criada pelo escritor delineia o medo que os dois compartilham de serem descobertos por Vilela, o marido traído.

Em Hamlet, o mistério é representado pelo sobrenatural, assim como em A Cartomante. Embora na obra de Machado de Assis haja um apelo menos surreal e espaço para dúvidas, ambas as histórias têm desfechos surpreendentes. Em El gato desaparece, posto que o protagonista tenha uma orientação racionalista (trata-se de um cientista), o segredo está em algo mais palpável, porém não menos enigmático, que se mantém até o plano final da película.

Muito deste clima claustrofóbico retrata bem o estilo cinematográfico de Carlos Sorin. É possível perceber a influência de grandes mestres do suspense, tais como Alfred Hitchcock e Roman Polanski. A narrativa minimalista também lembra grandes romancistas da corrente literária do Realismo como, por exemplo, Eça de Queiroz e o próprio Machado de Assis. Embora a película não possua um primor de genialidade, El Gato Desaparece é mais um filme “redondo” desta boa safra atual que invadiu o cinema argentino nas últimas décadas.

Aparentemente recuperado após período de internação compulsória na clínica psiquiátrica, Luis aos poucos tenta retomar sua vida ao lado da esposa Beatriz (Beatriz Spelzini). O retorno ao lar é marcado por um acontecimento curioso e crucial para o desenrolar da narrativa. Após episódio em que Donatello, gato de estimação da família, demonstra total aversão a Luis, o animal some da convivência do casal. O desaparecimento do gato faz referência ao famoso conto de terror de Edgar Allan Poe, intitulado O Gato Preto. O simbolismo do sumiço do animal, evento aparentemente sem importância para trama, na verdade funciona como elemento narrativo para imprimir um caráter sobrenatural ao enredo do filme.

A figura de Donatello deve ser vista sob várias óticas. Beatriz, que já se cercara de dúvidas a respeito da sanidade de Luis, angustia-se ao achar que o marido assassinara o gato. Além disto, a figura do felino pode ser vista sob a crença popular de que se trata de uma espécie possuidora de uma natureza transcendente. Em última análise, numa referência direta ao desaparecimento do gato no conto de Edgar Allan Poe, que possui desenlace inesperado, justamente como ocorre em El Gato desaparece.

A insegurança de Beatriz também acaba por tornar o maior tormento do espectador. Seu marido está plenamente recuperado? Realmente o que aconteceu a Luis foi fruto de uma crise psicótica ou Foucarde estaria de fato roubando suas idéias? Nota-se no decorrer da trama que Luis possui alguns traços neuróticos, sejam eles representados por um senso de organização contido no ato de comer uma salada ou então na necessidade de pôr em ordem alfabética todos seus livros do escritório. Mas afirmar que Luis está fora da “normalidade” humana soaria um pouco exagerado.

Embora os termos neurose e psicose sejam anteriores a Freud, hoje eles são compreendidos a luz de estudos realizados na área da Psicanálise. A neurose se comporta como um transtorno menos grave, com pouco prejuízo da capacidade de julgamento do sujeito, enquanto a psicose configura um rompimento do ser com o mundo. De uma maneira simplória, o indivíduo neurótico tende a utilizar da fantasia para construção de sua nova realidade na tentativa de fugir de um conflito que não pode ser resolvido. Na psicose, uma nova realidade é reconstruída juntamente a uma nova identidade do sujeito a partir de delírios e alucinações, pois aqui os conflitos são aceitos sem resistência do indivíduo. Desta forma, pode-se compreender que a neurose não renega a realidade, ela quer somente não tomar conhecimento dela, enquanto a psicose tanto a renega como a substitui. O que representaria melhor Luis? Foucarde é um impostor ou tudo seria apenas a imaginação de Luis?

A reveladora cena final faz jus a um cinema realizado com extremo cuidado. A parte sugestionável tenta não subestimar a capacidade de observação de quem assiste ao filme. Não há necessidade de promover complexas relações para compreender o desenrolar da trama, tal qual se vê numa infinidade de produções nos últimos anos que, por vaidade, tentam ser cultuadas ao lançar mão de elementos sem originalidade e supérfluos, com o simples intuito de confundir o telespectador. Trata-se de coerência de quem se propõe a realizar filmes que traduzem zelo e respeito pela sétima-arte. Neste ponto, não surpreende o fato do cinema argentino vir se comportando como referência na realização cinematográfica nos últimos tempos. El gato Desaparece é seguramente mais um destes bons filmes argentinos.

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