Eu, Pierre Rivièrre, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Eu, Pierre Rivièrre, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão

23 de Abril de 2014 às 21:18

Em 3 de junho de 1835, na pequena comuna de Aunay, região da Normândia, norte da França, um jovem camponês de 20 anos comete um terrível crime. Por volta do meio-dia, Pierre Rivière, com ajuda de uma foice, assassina brutalmente sua mãe, Victoire Brion, que tem suas vértebras cervicais avulsionadas e parte posterior do crânio dilacerada; seu irmão, Jules Rivière, cujo cérebro é fendido violentamente; e sua irmã, Victoire Rivière, que tem a cabeça degolada. Logo após o crime, Pierre adentra a floresta que rodeava a aldeia, onde vive por 1 mês, até ser preso em 2 de julho de 1835, enquanto caçava passarinhos numa estrada próxima ao seu vilarejo.

Mais de um século depois, por volta de 1960, Michel Foucault, filósofo francês, com auxílio de 10 pesquisadores, procura estudar a história da relação entre psiquiatria e justiça penal. Eis que o grupo depara-se com um enorme material sobre o caso Pierre Rivière. Um dossiê organizado no Collége de France rapidamente toma corpo e, em seguida, o vasto material produzido acaba por tornar livro. Foucault pouco escreve para o livro. Como coordenador, realiza a apresentação e contribui com uma das notas indexadas no final da obra.

O caso Rivière não teve tanta repercussão na época do crime. Os crimes de parricídio eram relativamente numerosos nos tribunais de júri da França. Tampouco, Pierre Rivière possuía traços de personalidades que o diferenciavam de outros criminosos, fato que poderia torná-lo um clássico da psiquiatria geral. Aparentemente, os motivos que deram destaque a este caso de parricídio se deveram a uma conjunção de fatores e circunstâncias que envolveram o crime:

- O grande número de material coletado sobre o crime, depoimentos, perícias e peças judiciárias que estavam disponíveis no Annales d’hygienne públique e de La medicine légale de 1836 (Espécie de revista médica indexada);

- A divergência que existiu entre os laudos psiquiátricos da época sobre a saúde mental de Pierre;

- A beleza do manuscrito feito a próprio punho por Pierre, na prisão, onde o mesmo explica as razões que o levaram a cometer o crime. 

O filme, assim como o livro, traz um olhar cru e imparcial sobre o caso Pierre. René Allio, diretor do filme, construiu uma narrativa ultra-realista e mostrou muito talento ao transpor a história do livro para as telas. Com intuito de aumentar a carga realística do filme, as cenas foram realizadas nas proximidades onde acontecera o crime e os atores foram selecionados entre os camponeses locais. Com toda lucidez, é uma das melhores adaptações cinematográficas de um livro. Isto se deve particularmente a verossimilhança imputada ao filme e ao cuidado com o figurino.

A passagem onde Pierre Rivière começa a escrever seu manuscrito é de arrepiar. O olhar sincero e inocente que Pierre imprime à tela é um dos grandes momentos do filme. Realmente nos sentimos íntimo de Pierre no momento da confissão do assassinato. Mais surpreendente é a lógica com a qual Pierre descreve os motivos do crime, pois no decorrer da narrativa fica claro que as razões e justificativas do jovem têm fundamentos e lógica que possibilitam uma discussão aprofundada sobre a psiquiatria.

Em seu manuscrito, Pierre relata os acontecimentos que o fizeram crer que a barbárie seria uma providência divina. O crime seria capaz de libertar seu pai do sofrimento terreno. Mesmo culpado por tal ação, o próprio acreditava que se Jesus Cristo se sacrificara pela humanidade, o acusado teria de sofrer as conseqüências para a redenção e felicidade de seu pai. O esclarecimento para tal circunstância baseava-se numa lógica arbitrária onde o jovem se fizera crer como instrumento de Deus. Além da mãe e da irmã, seu irmão, alma inocente, também deveria morrer para que o pai sentisse ojeriza de Pierre e assim pudesse viver uma vida plena, onde seria necessário ressentimento sobre a ação de Pierre.

No primeiro laudo psiquiátrico, Bouchard, o médico da província, nega alienação mental e afirma que Pierre é desprovido de patologias que poderiam imputá-lo. Em seguida, vieram mais dois laudos psiquiátricos que contradiziam o primeiro. O último, realizado por L. Vastel, famoso psiquiatra parisiense da época, que possuía conhecimento sobre a psiquiatria moderna, afirmava que Pierre era portador de monomonia, uma espécie de delírio específico que justificaria uma alienação mental do acusado.

Enfim, Eu, Pierre Rivière, lança um olhar sobre uma época que marca o crescente poder da psiquiatria sobre a justiça penal. A história de Pierre é capaz de ilustrar características muito peculiares. O senso de culpabilidade é posto à prova das teorias psíquicas. Mesmo com toda polêmica acerca da mente do jovem e a influência premeditada que as ciências jurídicas estavam por sofrer, conclui-se que, ainda que a história de um crime seja injustificável, sempre ela é repleta de sentimentos tão contundentes e, porque não dizer, demasiadamente humanos.

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