Extracampo: Hot-dog com Acarajé

Por Gustavo Vidigal, em MÚSICA

Extracampo: Hot-dog com Acarajé

20 de Janeiro de 2017 às 03:54

Nova Iorque, março de 1963, fim do inverno e início da primavera no hemisfério norte. O mês e o ano não poderiam ter sido mais propícios para definir a Bossa-Nova naquele momento. No Brasil, a bossa já era uma “jovem senhora” de 5 anos, rumo ao ocaso das novidades. Nos Estados Unidos, assim como no resto do mundo, a história estava por começar...
“Chega de Saudade” marca o início oficial da bossa nova, em 1958, cantada por Elizeth Cardoso no disco “Canção do Amor Demais”, com arranjos de Tom Jobim e o violão de João Gilberto que, à época, gerou um tsunami de estranhamentos, elogios e críticas pela abordagem harmônica e rítmica inéditas no samba. Meses depois, Gilberto gravou o primeiro disco em 78 RPM de sua carreira, contendo “Chega de Saudade” e “Bim Bom”.
Por outro lado, o Jazz sofria uma grave crise artística e comercial, desde o fim dos anos 1950, efeito da crescente popularização do rock 'n roll, e buscava desesperadamente uma renovação. Tony Bennett, por exemplo, veio ao Brasil em 1961, junto com o baixista Don Payne e ambos, extasiados com a nossa moderna sonoridade, levaram vários discos brasileiros para os Estados Unidos. Bennett mostrou alguns desses discos para seu colega e vizinho Stan Getz, que ficou igualmente embasbacado e, em poucas semanas, lançou os discos “Jazz Samba” e “Big Band Bossa Nova”, ambos de 1962.
Jazz Samba, com participação de Charlie Byrd, vendeu um milhão de cópias rapidamente. Contudo, a pressa dos músicos americanos em aprender o gênero brasileiro, sem falar na avidez da gravadora por novidades estrangeiras, fez com que muitas das canções tivessem erros graves de melodia e harmonia. Houve um terceiro lançamento, “Jazz Samba Encore!”, desta vez com a participação do cantor e violinista Luiz Bonfá, que vendeu bem, mas a "trilogia" não satisfez os produtores comercialmente a ponto de competir com Elvis Presley, Bobby Darin, Pat Boone, Henry Mancini e outros.
Finalmente, em 21 de novembro de 1962, os norte-americanos puderam ouvir a bossa nova tocada pelos próprios inventores brasileiros. O concerto “Bossa Nova - New Brazilian Jazz”, realizado no Carnegie Hall, contou com a participação de João Gilberto, Tom Jobim, Bonfá, Roberto Menescal, Sérgio Mendes, entre outros. Depois do concerto no Carnegie Hall, o produtor Creed Taylor considerou necessário o encontro entre Jobim e Gilberto com Getz para um registro histórico de execução do gênero, o que veio ocorrer em 1963 com Getz/Gilberto.
Bastaram dois dias de gravações, ocorridas em 18 e 19 de março de 1963, em Nova Iorque. A seleção dos músicos foi formada por Jobim no piano, Milton Banana, considerado o pai da batida de bossa nova na bateria, e Sebastião Neto, baixista, que terminou não saindo nos créditos por ser contratado da gravadora Audio Fidelity. Astrud Gilberto, que não era cantora profissional, aceitou entrar no disco a convite do seu então marido João Gilberto. Ela participa das faixas "The Girl from Ipanema" e "Corcovado". Astrud assume um estilo vocal sóbrio e quase sussurrado, sem excessos, que configuraria o vocal feminino na bossa nova.
Tom Jobim, o gênio do piano minimalista, executa somente o necessário à perfeição. Além de tocar, Tom ficou responsável por alguns arranjos. "Doralice" (Dorival Caymmi, Antônio Almeida) e "Pra Machucar Meu Coração" (Ary Barroso) são as duas únicas canções do álbum não compostas por Jobim. As outras são composições de parceria entre Jobim e os letristas Vinicius de Moraes em "The Girl from Ipanema", "Só Danço Samba", "O Grande Amor" e Newton Mendonça em "Desafinado". "Corcovado" ("Quiet Nights of Quiet Stars)" e "Vivo Sonhando" trazem letra e música de Jobim.
As gravações não foram completamente harmoniosas. Ruy Castro, em suas pesquisas sobre os bastidores do disco, conta que João Gilberto e Stan Getz frequentemente discordavam na escolha do melhor take entre os gravados e por isso cabia ao produtor Creed Taylor fazer o desempate. Em determinado momento, Gilberto, impaciente com as sutilezas rítmicas do saxofonista e sem dominar a língua inglesa, disse a Tom Jobim: "Diga a esse gringo que ele é burro", ao que Jobim traduziu: "Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.”
A engenharia de som ficou por conta de Phil Ramone, então dono do estúdio. Gene Lees fez a versão em inglês de "Corcovado" e Norman Gimbel, que ficou encarregado da versão em inglês para "Garota de Ipanema", acreditava que a palavra Ipanema nada significava para os norte-americanos, mas Jobim insistiu para a referência à praia do Rio de Janeiro não ser retirada. Com o material pronto nas mãos, Taylor engavetou o projeto por quase um ano com medo de sofrer um completo fracasso comercial. Dessa forma, o disco gravado em 1963 só veio a ser lançado em março de 1964.
Felizmente, Taylor estava enganado quanto à repercussão do disco, tanto que Getz/Gilberto vendeu mais de dois milhões de cópias em 1964.O disco ocupou o segundo lugar da parada de sucesso, perdendo a primeira posição para “A Hard Day’s Night” dos Beatles, e tornou-se um dos 25 discos mais vendidos do ano. O disco estourou e todas as atenções voltaram-se para a voz até então desconhecida de Astrud Gilberto.
Em 1965, Getz/Gilberto recebeu o Grammy de Melhor Álbum do Ano, Melhor Disco de Jazz e Melhor Arranjo Não Clássico, e "The Girl from Ipanema" ganhou o Grammy de Melhor Gravação do Ano. Registre-se que foi a primeira vez que um álbum de jazz conquistou a principal categoria do Grammy.
O disco ainda hoje é cultuado por músicos de jazz e bossa nova. Segundo a revista JazzTimes, numa edição de 1994, Getz/Gilberto é "[...] essencial para todos os colecionadores sérios de jazz [...] serve como prova de que é possível uma música ser um sucesso tanto artística quanto comercialmente..."Steve Huey da Allmusic, que qualificou nota máxima para a obra, afirma que não só foi um dos discos mais vendidos de jazz mas também um dos momentos mais belos e significativos da bossa: "material brilhante tocado de forma graciosa e sem grande esforço pelos músicos."
A revista Rolling Stone (EUA) considerou Getz/Gilberto um dos 500 Melhores Discos de Todos os Tempos em 2003, e entre os 100 Álbuns Indispensáveis do Século XX pela Vibe de 1999.
O sucesso de vendas e a qualidade artística de Getz/Gilberto abriu caminho para que vários intérpretes e instrumentistas prestigiados da música norte-americana, com destaque às estrelas máximas Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Frank Sinatra, começassem a gravar canções de Tom Jobim e da bossa nova. Tudo isso contribuiu ainda para que "The Girl from Ipanema" se tornasse a segunda canção popular mais tocada de toda a história.
Uma lenda diz que a emissão enfática de Stan Getz irritava João Gilberto, que preferiria um saxofone mais delicado. De fato, muitos consideram o saxofonista americano menos talentoso que o genial violonista baiano. Mas, o que este neófito escritor desconfia é que João Gilberto estava receoso que Astrud passasse a gostar mais de hot-dog do que de acarajé...
Gustavo Vidigal
Nova Iorque, março de 1963, fim do inverno e início da primavera no hemisfério norte. O mês e o ano não poderiam ter sido mais propícios para definir a Bossa-Nova naquele momento. No Brasil, a bossa já era uma “jovem senhora” de 5 anos, rumo ao ocaso das novidades. Nos Estados Unidos, assim como no resto do mundo, a história estava por começar...
“Chega de Saudade” marca o início oficial da bossa nova, em 1958, cantada por Elizeth Cardoso no disco “Canção do Amor Demais”, com arranjos de Tom Jobim e o violão de João Gilberto que, à época, gerou um tsunami de estranhamentos, elogios e críticas pela abordagem harmônica e rítmica inéditas no samba. Meses depois, Gilberto gravou o primeiro disco em 78 RPM de sua carreira, contendo “Chega de Saudade” e “Bim Bom”.
Por outro lado, o Jazz sofria uma grave crise artística e comercial, desde o fim dos anos 1950, efeito da crescente popularização do rock 'n roll, e buscava desesperadamente uma renovação. Tony Bennett, por exemplo, veio ao Brasil em 1961, junto com o baixista Don Payne e ambos, extasiados com a nossa moderna sonoridade, levaram vários discos brasileiros para os Estados Unidos. Bennett mostrou alguns desses discos para seu colega e vizinho Stan Getz, que ficou igualmente embasbacado e, em poucas semanas, lançou os discos “Jazz Samba” e “Big Band Bossa Nova”, ambos de 1962.
Jazz Samba, com participação de Charlie Byrd, vendeu um milhão de cópias rapidamente. Contudo, a pressa dos músicos americanos em aprender o gênero brasileiro, sem falar na avidez da gravadora por novidades estrangeiras, fez com que muitas das canções tivessem erros graves de melodia e harmonia. Houve um terceiro lançamento, “Jazz Samba Encore!”, desta vez com a participação do cantor e violinista Luiz Bonfá, que vendeu bem, mas a "trilogia" não satisfez os produtores comercialmente a ponto de competir com Elvis Presley, Bobby Darin, Pat Boone, Henry Mancini e outros.
Finalmente, em 21 de novembro de 1962, os norte-americanos puderam ouvir a bossa nova tocada pelos próprios inventores brasileiros. O concerto “Bossa Nova - New Brazilian Jazz”, realizado no Carnegie Hall, contou com a participação de João Gilberto, Tom Jobim, Bonfá, Roberto Menescal, Sérgio Mendes, entre outros. Depois do concerto no Carnegie Hall, o produtor Creed Taylor considerou necessário o encontro entre Jobim e Gilberto com Getz para um registro histórico de execução do gênero, o que veio ocorrer em 1963 com Getz/Gilberto.
Bastaram dois dias de gravações, ocorridas em 18 e 19 de março de 1963, em Nova Iorque. A seleção dos músicos foi formada por Jobim no piano, Milton Banana, considerado o pai da batida de bossa nova na bateria, e Sebastião Neto, baixista, que terminou não saindo nos créditos por ser contratado da gravadora Audio Fidelity. Astrud Gilberto, que não era cantora profissional, aceitou entrar no disco a convite do seu então marido João Gilberto. Ela participa das faixas "The Girl from Ipanema" e "Corcovado". Astrud assume um estilo vocal sóbrio e quase sussurrado, sem excessos, que configuraria o vocal feminino na bossa nova.
Tom Jobim, o gênio do piano minimalista, executa somente o necessário à perfeição. Além de tocar, Tom ficou responsável por alguns arranjos. "Doralice" (Dorival Caymmi, Antônio Almeida) e "Pra Machucar Meu Coração" (Ary Barroso) são as duas únicas canções do álbum não compostas por Jobim. As outras são composições de parceria entre Jobim e os letristas Vinicius de Moraes em "The Girl from Ipanema", "Só Danço Samba", "O Grande Amor" e Newton Mendonça em "Desafinado". "Corcovado" ("Quiet Nights of Quiet Stars)" e "Vivo Sonhando" trazem letra e música de Jobim.
As gravações não foram completamente harmoniosas. Ruy Castro, em suas pesquisas sobre os bastidores do disco, conta que João Gilberto e Stan Getz frequentemente discordavam na escolha do melhor take entre os gravados e por isso cabia ao produtor Creed Taylor fazer o desempate. Em determinado momento, Gilberto, impaciente com as sutilezas rítmicas do saxofonista e sem dominar a língua inglesa, disse a Tom Jobim: "Diga a esse gringo que ele é burro", ao que Jobim traduziu: "Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você.”
A engenharia de som ficou por conta de Phil Ramone, então dono do estúdio. Gene Lees fez a versão em inglês de "Corcovado" e Norman Gimbel, que ficou encarregado da versão em inglês para "Garota de Ipanema", acreditava que a palavra Ipanema nada significava para os norte-americanos, mas Jobim insistiu para a referência à praia do Rio de Janeiro não ser retirada. Com o material pronto nas mãos, Taylor engavetou o projeto por quase um ano com medo de sofrer um completo fracasso comercial. Dessa forma, o disco gravado em 1963 só veio a ser lançado em março de 1964.
Felizmente, Taylor estava enganado quanto à repercussão do disco, tanto que Getz/Gilberto vendeu mais de dois milhões de cópias em 1964.O disco ocupou o segundo lugar da parada de sucesso, perdendo a primeira posição para “A Hard Day’s Night” dos Beatles, e tornou-se um dos 25 discos mais vendidos do ano. O disco estourou e todas as atenções voltaram-se para a voz até então desconhecida de Astrud Gilberto.
Em 1965, Getz/Gilberto recebeu o Grammy de Melhor Álbum do Ano, Melhor Disco de Jazz e Melhor Arranjo Não Clássico, e "The Girl from Ipanema" ganhou o Grammy de Melhor Gravação do Ano. Registre-se que foi a primeira vez que um álbum de jazz conquistou a principal categoria do Grammy.
O disco ainda hoje é cultuado por músicos de jazz e bossa nova. Segundo a revista JazzTimes, numa edição de 1994, Getz/Gilberto é "[...] essencial para todos os colecionadores sérios de jazz [...] serve como prova de que é possível uma música ser um sucesso tanto artística quanto comercialmente..."Steve Huey da Allmusic, que qualificou nota máxima para a obra, afirma que não só foi um dos discos mais vendidos de jazz mas também um dos momentos mais belos e significativos da bossa: "material brilhante tocado de forma graciosa e sem grande esforço pelos músicos."
A revista Rolling Stone (EUA) considerou Getz/Gilberto um dos 500 Melhores Discos de Todos os Tempos em 2003, e entre os 100 Álbuns Indispensáveis do Século XX pela Vibe de 1999.
O sucesso de vendas e a qualidade artística de Getz/Gilberto abriu caminho para que vários intérpretes e instrumentistas prestigiados da música norte-americana, com destaque às estrelas máximas Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Frank Sinatra, começassem a gravar canções de Tom Jobim e da bossa nova. Tudo isso contribuiu ainda para que "The Girl from Ipanema" se tornasse a segunda canção popular mais tocada de toda a história.
Uma lenda diz que a emissão enfática de Stan Getz irritava João Gilberto, que preferiria um saxofone mais delicado. De fato, muitos consideram o saxofonista americano menos talentoso que o genial violonista baiano. Mas, o que este neófito escritor desconfia é que João Gilberto estava receoso que Astrud passasse a gostar mais de hot-dog do que de acarajé...
Gustavo Vidigal
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