EXTRACAMPO: O profeta do Rivotril

Por Márcio Barros, em OPINIÃO

EXTRACAMPO: O profeta do Rivotril

08 de Outubro de 2014 às 01:23

A atual edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais(sigla DSM, do inglês), referência mundial no diagnóstico de transtornos mentais, acrescentou mais 12 doenças às já existentes. Atualmente são 157, Cinquenta e uma a mais que a primeira edição, de 1952. Boa parte destas relacionada com ansiedade.

Estaríamos ficando mais doentes? Se não doentes, com certeza, mais medicados. De acordo com pesquisa encomendada pela folha de são Paulo, de 2009 a 2013 a venda de tranquilizantes como rivotril e lexotan, no Brasil, aumentou 42%. Em 2009 o rivotril concorria com o hipoglos na lista de medicamentos mais vendidos.

Aldous Huxley publicou seu romance admirável mundo novo em 1932 (20 anos antes da primeira versão do DSM). Nele, Aldous se referia a um alegórico mundo novo, ambientado em uma época futura na qual finalmente a vida seria totalmente dominada pela razão e pela tecnologia. Era a era ford.

No novo mundo, as emoções, as artes e as reflexões políticas, filosóficas, morais e religiosas seriam abolidas por serem considerados os motivos do fracasso do modelo do mundo antigo, que entrara em colapso. Em seu lugar as pessoas seriam condicionadas desde o “berço” a não se guiarem por princípios que não fossem os previamente estabelecidos pelo “sistema”. Não havia família, o envolvimento emocional era evitado por gerar instabilidade nas relações sociais e a contestação das regras era inadmissível.  

O preceito basilar do novo mundo era a satisfação plena, a busca do prazer constante por meio da tecnologia e da promiscuidade. Havia sido criada uma poderosa droga que dissiparia qualquer desconforto espiritual, o soma:

“se alguma vez, por qualquer infelicidade, acontece, por esta ou aquela razão, algo de desagradável, pois bem, há sempre o soma para permitir uma fuga da realidade, há sempre o soma para acalmar a cólera, para fazer a reconciliação com os inimigos, para dar paciência e para ajudar a suportar os dissabores.”

Huxley criara um romance-alegoria que alertava sobre o surgimento de um novo tipo de totalitarismo, menos explícito que o previsto por George Orwell em 1984, porém tão cruel e eficiente quanto. Um totalitarismo dissimulado, em que o dominador tem o consentimento do dominado. Onde o suposto conforto material e espiritual seria o principal meio de dominação. O consumo e os tranquilizantes trariam conforto para o corpo e a alma. Em troca o sistema teria estabilidade.

O psiquiatra americano Allen Frances (que participou da penúltima edição do DSM) critica o novo manual por achar que há uma “banalização” dos diagnósticos. Segundo Allen, a depender do aumento no número deles, num futuro bem próximo todos nós teremos algum tipo de doença mental , a ser tratada com alguma medicação. “a nova versão classifica a ansiedade normal do dia a dia como um transtorno, por exemplo”, afirma o psiquiatra. Há várias críticas no sentido de que o novo manual vem sofrendo profunda influência da indústria farmacêutica.

Polêmicas à parte, algumas profecias de Huxley parecem se concretizar, principalmente, as que se referem à busca incessante de conforto como ideal de vida. Hipoglos para as assaduras do corpo e rivotril para as da alma. O homem se apoia cada vez mais na ciência da satisfação como forma de redenção. O problema é o que vem a reboque. Afinal, como diria o próprio Huxley:

“A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão.”

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