Força Maior (Suécia, França, Noruega, 2014)

Por Raul Lopes, em CINEMA

Força Maior (Suécia, França, Noruega, 2014)

06 de Março de 2015 às 13:38

FORÇA MAIOR EM CINCO ATOS

PREÂMBULO

Parece haver uma proteção imaginária dentro do nosso viver que se assemelha a uma bolha transparente, insípida e inodora. Por vezes, nos instalamos ali por tempos indeterminados. E deixamos estar. Há os que pensam, os que sentem, os que leem, os que choram, os que nada fazem. Há os que denominam este espaço de ‘zona de conforto’. Há os que, como eu, preferem não se ligar a denominações, quaisquer que sejam, por se tratar de um espaço cheio de nuances, complexo, com brilhos variados de permeio. Sair é abandonar este espaço imaginário e se permitir ao novo e desconhecido; é fazer aparecer nossas repressões e resistências mais angustiantes. E não; não é nada fácil se deparar com tais. É um conluio de difícil deglutição. Mesmo assim, esse tal desconhecido acontece e aparece e assombra sem nem pestanejar, até sob luz no luar. Pode ser em uma sessão de cinema, ou em outra de terapia; pode ser em uma escola de música ou em outra de Línguas. Pode ser em uma viagem de família.

(baseado na obra Force Marjeure, de Ruben Östlund, e na família Tomas, Ebba, Vera e Harry)

PRIMEIRO ATO: Ebba abraçando as crianças

Tenho dois filhos lindos: Harry e Vera. Vejo fotos e me derreto; ouço ruídos e me detenho em suas vozes; vejo sentidos e quero com eles dividir os ouvidos. Dividimos a mesma pasta de dente e fazemos juntos as tarefas de casa e os jogos do tablet. Saímos para esquiar e nem vemos o tempo passar. Nos abraçamos em trio como se não houvesse ninguém para faltar. Nossa união parece tão intensa que nem cabe aqui explicar. Mas eu falo tudo isso e me detenho a chorar. E me questiono: - Por quê? Para que tudo isso ocorrer? Como posso eu achar que não falta ninguém se é do pai dos meus filhos que deveria citar? O que passa na minha cabeça enquanto meus filhos me abraçam? É tudo tão intenso e complexo e duvidoso. Parece que uma avalanche apareceu de repente e levou consigo um algo que ainda nos tinha e que a nós deixava em conexão. E parece que esse algo saiu correndo, foi embora, fugiu, dilacerou-se. É difícil pensar assim. É como encostar a cabeça de quem você ama e não sentir o atrito no cabelo, mas o tilintar de um capacete. Na minha cabeça, só aparecem dúvidas, perguntas, divagações. Eu tento me desligar disso tudo, mas para onde vou? Fugir? Correr? Talvez por isso prefira simplesmente ficar.

SEGUNDO ATO: Tomas tomando cerveja

Resolvi passar cinco dias de férias com a minha família. Confesso que tenho deixado a desejar por pouco tempo dispor. Ou será que tempo só dedico ao que quero propor? De tempos, dedico-me a algo que me distancia de quem amo, mas não consigo denominar que algo é esse. Esforço-me, é bem verdade. E penso: - Será válido este esforço? Será se faço o que tenho de fazer? Será se tudo isso é factível? Ando nesses dias me questionando sobre o que sou e, principalmente, quem eu fui. Tenho uma esposa linda, sensacional, amável, carinhosa, caridosa. Percebo que a medida que meus adjetivos se tornam nominais, vão ficando mais fraternais e menos sexuais. Mas o desejo continua comigo. Não sei se como antes. Mas por que fujo? Saio para esquiar sozinho e nem pensar consigo. Proponho-me a tomar uma cerveja e relaxar e o que consigo são alucinações e delírios: bêbados que gritam diante dos meus olhos e mulheres que dizem se cativar pelos meus sentidos. Mas nada disso existe. Quanta loucura! E perambulo. Durmo no chão, no hall, à espreita, na porta, à espera. Sinto-me desconfortável e pareço esconder-me dentro dos meus próprios instintos. Divago: - Que impulsos são esses? Que vida é essa? E choro.

TERCEIRO ATO: Ebba e Charlotte conversando

Ontem encontrei Charlotte no saguão do hotel. Havia a conhecido dois dias antes, enquanto transitava e fazia meu check-in de hóspede. Surpreendeu-me a conversa que tivemos. Tantas questões passaram na minha cabeça. Ela diz ter um relacionamento aberto com o marido. Tem filhos, tem emprego, tem dupla vida. Tem também um outro homem, um outro caso, um algo fugaz. Ela me diz que ‘não pode alimentar sua autoestima somente ao fato de ter um marido ou ser mãe’. Eu penso: - Absurdo? Parece que a frase soou com estranhamento diante dos meus olhos. Senti-me por completo distante daquela que intervalava um sorriso a umas doses de chopp. Senti-me refém de uma vida a que me propús e sob a qual me parece agora inexistente. Soa como se toda essa avalanche que me cercou nos últimos dias seguisse contornos estranhos e me levasse a um estado que nunca refleti. Aparece no meu consciente a figura do homem como marido e ao qual sempre me dediquei. E no que difere? – é o que me pergunto. O olhar não parece o mesmo; o toque é translúcido; o beijo é distante.  E me vejo agora em um lugar aonde nunca estive, mas que parece sempre ter existido.

QUARTO ATO: Tomas gritando

Refúgio? – é o que pergunto.

Grito para o além, para esquecer, para lembrar.
Grito por discordar, para alguém, sem nem saber.
Grito aos meus filhos, e a eles, para fazer.
Um grito abstrato:
- Mas o que eu hei de fazer?

Grito de fraco, grito de forte.
Grito e disparo
Um grito de morte.

Penso e reparo,
Paro e não volto.
Grito e não paro;
Um raio sem volta.

QUINTO ATO: Ebba caminhando

E no fim, eu caminho. Carrego Vera comigo. Olho ao redor e me sinto distante. Reflito por instantes e não sei o que mais dizer. Apenas me questiono, duvido, escuto. O que posso dizer é que o amor que passa por entre os meus braços parece, aos poucos, diluir-se, retrair-se, fugir da ótica e da óptica. Sublimar-se.

FIM

Refletir é se questionar.
Questionar é se defender.
Defender é se perguntar.

E a resposta? A doença de perguntar.

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