Green Book (EUA, 2018)

Por Leandro Lages, em CINEMA

Green Book (EUA, 2018)

24 de Fevereiro de 2019 às 23:06

O ano era 1998. À época eu trabalhava no departamento jurídico de um conglomerado empresarial que atuava em todo o país. Naquele dia fui chamado para acompanhar um caso estranho às lides empresariais que me chegavam.

Tratava-se do caso de um administrador proveniente de outro Estado que havia sido vítima de um crime e solicitava auxílio ao jurídico da empresa. Muito culto, educado, boa condição social e financeira. E negro.

Relatou o caso com calma e articulando corretamente os argumentos, característica de quem realmente falava a verdade. Havia sido vítima de uma covarde agressão racial.

Como mudara há pouco tempo para a cidade, não conhecia tantas pessoas, inclusive no condomínio onde o crime aconteceu. Chegara do trabalho e percebeu uma criança com a bicicleta na sua vaga de garagem. Parou e pediu para que ela brincasse em outro lugar.

A mãe, que estava próximo, ao perceber aquele “estranho” conversando com o seu filho reagiu com ignorância desferindo as seguintes frases em voz alta: “O que esse negro quer?”

Ele tentou responder de forma polida, ao que foi impedido por novas agressões verbais: “Não fale comigo, não gosto de negro”. Novas tentativas de diálogo, todas sufocadas pelo argumento final: “Esse negro só quer ser, para mim negro não é gente”. Não viu outra alternativa, retirou-se do local.

Levamos o caso ao distrito policial. A recém aprovada lei que definia o crime de injúria racial acabara de entrar em vigor. O delegado ouviu indignado a situação e intimou a agressora a comparecer à delegacia no dia seguinte.

Na hora marcada, estávamos lá novamente. Imaginei que me depararia com uma pessoa caricata, arrogante e de fisionomia vil. Muito pelo contrário, tratava-se de uma senhora distinta, bem vestida e de aparência tranquila. Em nenhum momento dirigiu o olhar para o meu cliente, nem mesmo quando o delegado nos chamou para a sua sala.

Lá entrando, pensei que ela negaria tudo. Para minha surpresa, confirmou a versão e ainda indagou o que havia feito de errado. O delegado, enérgico e sem conseguir esconder a sua revolta, explicou o crime. Mais do que isso, deu uma aula de civilidade e humanidade à distinta senhora. E finalizou informando que encaminharia o caso à Justiça, onde havia alguns juízes negros.

Naquele instante a senhora reagiu assustada e se esvaiu em lágrimas. Pela primeira vez dirigiu-se ao agredido pedindo desculpas. Ele permaneceu impassível e limitou-se a dizer ao delegado que apenas gostaria que se fizesse justiça.

De nada adiantaram as súplicas da senhora implorando para que ele “retirasse a queixa”, a sua resposta, por repetidas vezes olhando firme para o delegado era sempre a mesma: “apenas desejo que se faça justiça”.

Ao sair da delegacia ele me disse que não se convencera do arrependimento ou do pedido de desculpas da senhora. Acreditava que ela apenas estava com receio de ser presa e por isso verbalizara as desculpas com o único propósito de se livrar do problema.

Não acompanhei o desfecho do imbróglio, outro colega mais afeito às lides criminais assumiu o caso e eu terminei por sair da empresa, alçando voo solo na advocacia. Mas relembrei a situação vinte anos depois ao assistir ao filme GREEN BOOK.

No filme, que se passa nos EUA na década de 1960, um músico negro inicia uma turnê pelo sul do país, região ainda ressentida com a abolição da escravatura e com fortes sentimentos racistas.

Sabendo que enfrentaria problemas, o músico contrata um motorista que também faria as vezes de segurança. Além disso, deveria seguir o “Green Book”, um guia de viagens que indicava os estabelecimentos que aceitam negros nos EUA. Curiosamente, o motorista também era racista, mas aceitou a função por estar desempregado.

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E assim o filme segue, com a convivência entre os dois nas estradas, cidades e shows. Um legítimo “road movie” histórico retratando com fidelidade as cenas de discriminação, mas, por incrível que pareça, mantendo o bom humor. Este o grande mérito do filme: ser agradável, mesmo cultivando uma indignação crescente no espectador.

Afinal, como não se indignar sabendo ser verdade que alguns restaurantes, bares e hotéis segregavam a clientela? Mesmo que o cliente fosse a atração musical da noite? Ou que algumas pessoas até assistiam a shows de músicos negros, mas não toleravam a presença de negros na plateia? Ou que algumas lojas até vendiam roupas para negros, mas não permitiam que eles as experimentassem antes de comprar? Ou que algumas residências possuíam banheiros fora de casa para os negros? Ou que alguém jogava um copo no lixo apenas por um negro ter bebido nele?

Essa temática já rendeu vários filmes e livros. Dentre os filmes, destaco “Ray” (2004), sobre a conturbada história do músico cego e negro Ray Charles, também vítima de preconceito durante as suas apresentações.

E dentre os livros, cabe mencionar “A Cabana do Pai Tomáz”, obra que, segundo Abraham Licoln, influenciou a causa abolicionista nos EUA e a Guerra da Secessão, em 1861.

Green Book demonstra que, mesmo após 100 anos da abolição da escravidão, o preconceito continuava forte e vivo nos EUA.

No Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão (em 1888), também após mais de 100 anos da Lei Áurea me deparei com cenas de preconceito racial. E pude ver (e crer) que os relatos sobre o caso não se tratam de narrativas ficcionais exageradas.

Green Book pode até não ganhar o Oscar para o qual foi indicado (e creio que não ganhará), mas honrou a sua função de manter viva a nossa indignação diante de atitudes discriminatórias que até hoje insistem em se manifestar nas mais diversas formas e cores.

Post Scriptum: texto redigido antes da cerimônia do Oscar-2019. Para minha surpresa e contrariando as expectativas, Green Book levou a estatueta de melhor filme.

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