Lavoura Arcaica (Brasil, 2001)

Por Leandro Lages, em CINEMA

Lavoura Arcaica (Brasil, 2001)

11 de Janeiro de 2017 às 04:20

Filmes baseados em livros são uma incógnita. Costumam desapontar os leitores. Afora o fato de jamais conseguirem transpor para as telas a liberdade imaginativa de uma obra literária.
Lavoura Arcaica é uma agradável e surpreendente exceção a essa inabalável regra. Inspirado na obra de igual nome escrita em 1975 pelo romancista brasileiro Raduan Nassar, o filme guarda uma surpreendente fidelidade ao livro.
Autor de poucas obras, Raduan Nassar pode ser considerado o José Saramago dos trópicos pelo seu estilo narrativo de frases longas e linguagem rebuscada, abusando das metáforas a ponto de criar uma espécie de “prosa poética”. Em que outra narrativa alguém descreve um piscar de olhos como o “voo fugaz dos cílios”?
Lavoura Arcaica deve ser lido com uma paciência meditativa para que se compreenda os jogos de palavras e as insinuações veladas. Requer um ritmo lento e calmo de leitura que lembra um trecho da obra no qual um dos personagens conclui que “não bebe do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia”.
Não raro sente-se uma inevitável necessidade de repetir a leitura de alguns parágrafos para compreende-lo melhor ou por puro deleite literário.
Infelizmente, esse comportamento não mais condiz com o estilo de vida elétrico e mecânico da modernidade no qual não se valorizam as pausas contemplativas e as leituras reclamam uma dinamicidade que as tornam efêmeras e passageiras.
O filme consegue honrar o livro com tanta fidelidade, que não só o enredo, mas também os diálogos são idênticos, o que termina por torna-lo uma obra sem igual no cinema brasileiro, inclusive pela duração de quase três horas.
Some-se a isso uma trilha sonora que exprime a profundidade da obra, uma fotografia que retrata as sensações descritas no livro e uma exímia atuação de Raul Cortez e Selton Melo dramatizando os longos e tensos diálogos. Em alguns momentos é possível até mesmo acreditar que o cinema quase pode superar a literatura.
O enredo gira em torno de um filho que foge na modorrenta fazenda onde sua família vive, trabalha e extrai o sustento nas atividades de campo.
O patriarca conduz a família com uma rigidez protetiva, moldando um caráter firme de respeito, união familiar e valorização do trabalho. Apesar do comportamento sisudo do pai, o filho sabia que “depois que o vinho umedecia sua solenidade” a alegria em seus olhos demonstrava que "nem tudo em um navio se deteriora no porão”.
A mãe solicita que o filho mais velho parta em busca do filho que fugiu. Assim que o encontra, iniciam um diálogo onde ele explica que fugiu por querer “ser dono dos próprios passos” e não mais suportar a rotina da vida na fazenda, apesar de não lhe faltar o carinho da mãe, a proteção do pai e a fartura na mesa.
Sua ausência fora sentida por todos, sendo-lhe dito pelo irmão, sobre o momento da fuga, que “naquele dia, na hora do almoço, cada um de nós sentiu mais que o outro, na mesa, o peso da tua cadeira vazia.”
O irmão convence o outro a voltar, mas o seu retorno trará uma grande convulsão na ordem sacra da família, despertando nos demais vontades até então reprimidas e desconhecidas, revelando a fragilidade da harmonia familiar.
Tanto o livro quanto o filme não obedecem uma narrativa linear. Iniciam pelo encontro entre os dois irmãos, seguindo-se as demais cenas em tempos diversos e alternados, até o clímax arrebatador.
Lavoura Arcaica pode ser lido ou assistido, não importando o que fazer primeiro. Mas somente usufruirá o deleite da obra aquele que, na primeira cena do filme, compreende o que significa estar “em um quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero”.
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