Melancholia (Dinamarca,2011)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Melancholia (Dinamarca,2011)

15 de Julho de 2014 às 23:45

Segurar por muito tempo é apenas um medo de deixar
escapar, porque nem tudo que vai volta, você sabe? 
Uma coisa é clara: Tudo é descida a partir daqui.

Queens Of The Stone Age

Freud afirmava que a maior parte dos nossos atos consiste em justificativas para sobrepujar a morte.  Trocando em miúdos, a todo momento o ser humano se encontra em exercício para fugir de seu destino inexorável. Qual certeza maior da vida senão a morte? Sendo assim, se não se pode escapar ao destino, porque tanto se refuta discorrer sobre a finitude da vida? Existe algo tão mistificante na morte ao ponto de se evitar qualquer explanação sobre a inapetência do homem?

A passagem marcante do filme “As Horas” (2002), de Stephen Daldry, mostra a escritora Virgínia Woolf lançando-se ao rio em sua implacável decisão de encerrar a existência. Muito a escritora ponderou até sentir-se serena e confiante para dar cabo a sua vida. Esta serenidade faz um paralelo com a personagem Justine (Kirsten Dunst) em Melancholia. Dotadas de um sentimento de inadequação terrena, resultado de certa autenticidade que legitima seu sofrimento, posto que sejam as únicas em seus círculos sociais a “flertarem” com a morte, ambas necessitam do sentimento de solidão para justificar o seu viver. Quando se perde esse “bem” inerente ao ser que pena (aqui temos outro paralelo entre Virginia e Justine), o resultado não difere do destino trágico das duas personagens.

Este ponto-de-vista é o protótipo para a análise de Melancholia. No entendimento de Justine, sua tristeza é seu dom precioso. Perder isto é sentir-se mortificada, como certa vez cantou Fernando Catatau: “Preciso da minha solidão, daquela sensação de estar em um labirinto dark”. Desta forma, pode-se compreender uma festa de casamento onde os noivos não terminam casados ao fim da cerimônia, como acontece em  Melancholia: Numa existência sem sentido, atos dotados de algum sentido não fazem sentido algum. Usando as próprias palavras da Justine, recém-casada, que se dirige ao marido no fim da cerimônia: “Tudo poderia ter sido diferente. Mas, Michael, o que você esperava disso tudo?”

Melancholia vem do grego mélas+cóles, que significa numa tradução livre Biles Negra. Este termo vem dos estudos de Hipocrates sobre os Humores Corporais. A Biles negra, ou humor negro, representa um desequilíbrio orgânico e traz uma conotação física ao sentimento de tristeza. Na idade moderna, o termo se aproximou ao Niilismo, que imputou o caráter psíquico ao significado de melancolia e aumentou a carga de ceticismo à visão que o ser deprimido carrega. Este sentimento Niilista é bem ilustrado por Caetano Veloso quando canta: "Estou triste, tão triste, estou muito triste, por que será que existe o que quer que seja?" Na esfera contemporânea, o termo é tratado como doença orgânica, numa explicação novamente física do distúrbio.

A visão do filme tende a transcender o termo melancolia e afastá-lo do “puramente” orgânico. Aparentemente, a problemática de Justine se encontra mais na esfera social ou filosófica do que em qualquer defeito físico que porventura a personagem possa ter. Isto justifica o fato de Justine sentir-se totalmente sã quando anunciada a colisão do planeta Melancholia com a Terra. Enquanto todos estão inseguros e impetrados com a possibilidade da aniquilação da existência, finalmente Justine enxergar um acontecimento coerente para um viver despido de qualquer sentido.

Ainda falando sobre paralelos, impossível não ligar Lars Von Trier a Tarkovski. No belíssimo prólogo que abre o filme, temos uma sucessão de imagens que simboliza toda a trama que vem a seguir. Ao som da trágica Tristão e Isolda, de Vagner, a também trágica história do fim-do-mundo se passa enquanto se vê o quadro Os Caçadores da Neve, de Peter Bruegel. Este quadro nos remete à lendária cena da biblioteca em Solaris, onde os personagens de Tarkovski estão a discutir a decadência da humanidade, assim como vemos em Melancholia.

Outra aproximação que se faz dos dois diretores baseia-se no fato de Lars Von Trier escolher como temática o fim-do-mundo para realizar um estudo sobre a natureza humana. Assim como Tarkovski, em Solaris, filmou talvez o melhor filme de ficção científica mergulhando na consciência do homem sem usar sequer um “efeito especial”, Trier conseguiu criar um clima de catástrofe baseando-se apenas na angústia psicológica de seus personagens. Em vez de cenas de explosão, invasões ou coisas do gênero, temos em Melancholia o silêncio, a claustrofobia, a resignação, a ausência de trilha sonora, o medo dos personagens traduzidos por closes trêmulos e o uso da luz natural para ilustrar o clima de terror  que impera na trama.

Ainda sobre o enredo, a relação entre as irmãs Justine e Clara (Charlotte Gainsbourg) simboliza a rota de colisão entre Melancholia e a Terra. As duas personagens seguem, como os dois planetas, interagindo e ilustrando a necessidade de uma com a outra, em mais um artifício engenhoso de Lars Von Trier, para legitimiar a visão existencialista de Justine,  que é aquela onde o fim seria um bem para a humanidade.  Neste ensejo, uma conforta e acrescenta a outra , afinal Justine e Clara sentem-se mais “humanizadas” quando vislumbram a finitude, assim como a colisão entre os planetas seria a solução ideal. Esta ligação enriquecedora e ao mesmo tempo trágica nos remete ao fim da relação entre John Lennon e Paul MacCartney, artistas que se preencheram mutuamente e viveram, um como antítese do outro, em busca da expressão artística do que há de mais sublime no ser.      

Em meio a toda polêmica que envolveu o filme, com acusações de anti-semitismo a Lars Von Trier, o que acabou rendendo o título de persona non grata no festival de Cannes, Melancholia foi escolhido o melhor filme europeu do ano de 2011 e elevou o nome do diretor ao título de um dos melhores realizadores do cinema atual. Muito disso é resultado da participação de bons conhecedores do sentimento de tristeza, pois Kirsten Dunst e Von Trier assumiram na época já terem tido episódios de Depressão grave. Talvez sejam ossos do ofício ou um desejo inconsciente dos dois, tal qual Justine compartilha, e que Nietzsche tratara uma vez: “O homem precisa daquilo que em si há de pior se pretende alcançar o que nele existe de melhor”.  

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