Morangos Silvestres (Suécia, 1957)

Por Diego de Montalvão, em CINEMA

Morangos Silvestres (Suécia, 1957)

26 de Junho de 2015 às 17:06

Era Junho quando o meticuloso médico e já velho Isak Börg, após uma noite de sono e de sonhos, vê-se transtornado e confuso diante de uma viagem à Lund, proposta previamente no intuito de receber um Título Honorário na Universidade daquela cidade. De passagens aéreas compradas, ele decide mudar a rota, fazê-la terrestre, e recebe a companhia da afável nora Marianne como recompensa. Na consciência, estão os caminhos que ele gostaria de percorrer: a casa aonde morou quando criança, a visita à mãe, o encontro com o filho, o recebimento do prêmio. Acontecem em sequência tais fatos, mas a viagem muda de rumo, substitui os contornos aritméticos de estrada e adentra nas linhas mais tênues do inconsciente.

“Nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda a minha vida social e tornou solitária minha velhice”.

Já em sua primeira parada, ele se desloca em quilômetros infinitos e abstratos, e encontra a bela Sara, com o mesmo sorriso singelo de outrora, na mesma casa aonde conviveu com seus irmãos e primos durante toda a sua infância. No canteiro que costumava colher morangos, ele se deita e relembra com fervor desse sensível momento do seu viver. Lembra das paixões e desilusões que o fez ser o que é hoje; lembra da mãe, sempre rígida e rude até na mesa em que celebram o café da manhã; lembra os momentos em que sumia enquanto pescava na companhia de seu pai. Lembra também de Sara e do amor que anos depois desfaleceu-se em migalhas invisíveis. Ao se dar conta que estava sonhando, ou simplesmente fantasiando a sua vida de anos atrás, vê-se sozinho, frio e desamparado.

            Sob luz da realidade de volta ao seu semblante, Isak se depara com outra Sara. Esta palpável, simpática e tão parecida com sua antiga paixão. Um misto de felicidade e apatia parecem adentrar em sua alma solitária. Vê-se a todo momento confundido com o que se mostra real e o que é sonho. Passa até a se surpreender com a tamanha admiração que a nova Sara passa a lhe denotar. Resolve continuar sua viagem, agora com a bela jovem e mais dois amigos, Viktor e Anders, o acompanhando.

“É um velho egoísta. Não tem consideração. Só ouve a si mesmo”
“É uma velha fria como um gelo, mais assustadora do que a própria morte”

Na estrada real, Isak se depara com algo igualmente real. E colide com um carro. O que parece estar sob controle, transforma-se mais uma vez em um campo imaginário e fantasioso. O casal presente no outro carro, e que nada apresentou como sequela do acidente, o faz lembrar do seu próprio relacionamento. Tratava-se este de um casamento ‘infernal’, cheio de ‘indiferença, egoísmo, falta de concentração’. O fato é que, mesmo idoso, Isak nunca percebera tal fato. E é só quando se reconhece no outro o seu próprio desejo que um campo invisível passa a ter forma diante dos próprios olhos. Talvez por resistência, repressão, onipotência, ele sente algo que até então não lhe era conhecido. E ‘sente-se estar morto, apesar de vivo’.

Marianne assume, então, a direção da viagem. Antes de Lund, acontece uma última parada na casa da mãe de 96 anos, igualmente distante e fria. Surpreende-se com algo já ciente: “Dez filhos e todos mortos, exceto você, Isak” – a mãe relata. A pálpebra cai e um soturno semblante se dissipa diante de sua órbita. Duvida, talvez, da sua própria existência, parecendo demonstrar que é preciso sentir tudo aquilo para continuar vivendo. No mesmo encontro, surpreende-se com a mãe, ao mostrar-lhe um relógio sem ponteiros. Imagina a abstração de tal objeto. Quem sabe a ausência de tais instrumentos do relógio sirva para se refletir acerca de momentos vivenciados e que não precisam de hora exata para tomar corpo, nem de estímulo para dar corda. Não precisam da realidade das horas. Apenas despertam e afloram. E tudo isso parece o corroer por dentro, a ponto de se imaginar diante de um promotor que o acusa de culpa. Culpado?

Acho esta vida um lixo e não quero ser forçado a viver mais do que desejo”
“Não existe certo ou errado. Agimos conforme seja necessário”

Nos últimos momentos antes da chegada à Lund, Isak surpreende-se com a aproximação da nora Marianne. Agora, é ele que parece mais afável e afetivo. Por seu turno, ainda ouve da mesma que seu filho, Evald, é ‘tão frio quanto ele’. Ouve o desejo de vida de Marianne e a pulsão de morte do filho. Para este, ‘não existe viver, existir, procriar; só se vive para morrer’. Justifica sua posição por considerar-se um ‘filho indesejado fruto de um casamento infernal’. Tais fatos parecem ainda mais confundir o ego do velho médico que, com o ‘frio da morte e da solidão’ sombreando sua aura, vê em seu filho o reflexo de sua própria sombra. Reconhece-se como ‘frio’, e torna clara a aparente solidão que até então ele vive.

                  Ao receber, finalmente, o prêmio e o título honorário de Lund, Isak resolve descansar. Beija a nora e adormece. ‘Tenta relaxar com as lembranças da sua infância’. E lembrando dos ‘traumas que se sente depois de crescer’ permanece ali, estático, adormecido, solitário.

https://www.youtube.com/watch?v=quJXk_WfHn4

“Durante o dia a gente tenta com sorrisos disfarçar, alguma coisa que na alma conseguimos sufocar”

 

           

 

 

 

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